É tão difícil ter humanidade aqui. É cansativo, e parece que dia após dia o mundo está pedindo justamente para você desistir.

A tradução desse discurso do blog da ativista israelense Sahar Vardi¹ no Times of Israel está circulando na rede.

Nós, da esquerda, somos frequentemente acusados de dupla lealdade. E, em dias como este, sinto que é isso mesmo. Embora “leal” não seja exatamente a palavra certa nesse contexto, como vou explicar, a sensação é essa.

Esta manhã, no mercado Mahane Yehuda, em Jerusalém, um músico de rua cantava “Am Yisrael Chai” em tom lamentoso. O mercado mesmo estava quase vazio e uma mulher falava com uma amiga sobre seu verdureiro de sempre, que não tinha permissão para abrir a loja hoje. Todas as barracas de propriedade dos árabes estão fechadas.

Em uma rua no bairro nobre de Rehavia, as famílias saem de dois carros. A maioria já estava chorando, o restante tinha uma tristeza indescritível no olhar. Batiam baixinho na porta de uma das casas. Família de alguém que morreu? De alguém sequestrado?

Você abre um vídeo de um gari que foi espancado no centro da cidade por ser árabe e tente não desviar o olhar.

“Dupla lealdade ” é ver isto e aquilo com lágrimas nos olhos.

É aquele momento em que você conversa com um amigo que não sabe se os parentes estão mortos ou sequestrados e o que deveria esperar, e vê o desamparo, o medo, a dor profunda. E um momento depois, é falar com um amigo de Gaza que o único que pode dizer é que cada noite é agora a noite mais assustadora da sua vida; que ele fica pensando nas suas possibilidades, e as das suas filhas, de estarem vivas na manhã seguinte.

“Dupla lealdade ” é sentir o desgosto disto e daquilo também.

É aguentar este momento entre tristeza, dor e choque pela destruição total do kibutz Nir Oz e pensar em todas as pessoas de lá e, ao mesmo tempo, sentir horror pela iminente destruição total do bairro Shuja’iyya e pensar em todas as pessoas de lá.

É sentir o desejo de doar sangue e organizar pacotes com alimentos para o sul, e de estar na aldeia de Susia, na Cisjordânia, quando os colonos atiram em qualquer pastor que se atreva a deixar a aldeia.

Lealdade pode não ser a palavra certa. É dor dupla, desgosto duplo, cuidado, amor. É manter a humanidade de todos. E é difícil. É tão difícil ter humanidade aqui. É cansativo, e parece que dia após dia o mundo está pedindo para você desistir. É muito mais fácil “escolher um lado” – quase não importa qual lado, basta escolher e se ater à sua decisão e, pelo menos, reduzir a da dor que você aguenta. É, pelo menos, sentir-se parte de um grupo e estar menos sozinho em tudo isto.

Como se fosse realmente uma opção. Como se não entendêssemos que nossas dores estão entrelaçadas. Que não há solução apenas para a dor de Ofakim sem uma solução para a dor de Khan Yunis. E sabemos isso, agimos assim e sentimos a dor novamente.

Então, o que estou dizendo aqui – e por quê? Qual é o sentido, exceto o de tentar expressar esse sentimento de ter dois mundos que parecem tão contraditórios por fora, mas tão iguais por dentro. Acho que o mais perto que cheguei de uma resposta para o real motivo que me leva a escrever é porque, de alguma forma, seja ela comovente ou devastadora, também parece que é o único otimismo que posso manter agora. Otimismo que se baseia no facto de existir e de ser possível. E esta dor que alguns de nós da nossa pequena comunidade tem, esta “dupla lealdade”, pode ser a maior esperança para este lugar.


¹ Sahar Vardi é uma ativista anti-ocupação baseada em Jerusalém.

Traduzido do inglês por Graça Pinheiro