Por Edith Moniz*

Criançada, garotada, aqui! Venham aqui, pertinho de mim, sentem-se. Vamos fazer uma roda. Isso, sentados bem juntinhos para espantar o frio. Agora escutem. Quero contar uma história, a nossa história.

Muitos, muitos anos atrás, quando vocês nem haviam nascido, nosso País vivia um momento terrível, sombrio. Eram anos complicados, duros, tão duros que, imaginem só, foram chamados de “anos de chumbo”. O povo devia obedecer calado, em silêncio, sem reclamar de nada. Se alguém falasse alguma coisa que contrariava os interesses dos poderosos, era preso, torturado, morto ou exilado. Exilado significa que devia abandonar o País, ir embora para nunca mais voltar.

Passaram anos e anos, aos poucos o povo começou a se organizar e se tornar cada vez mais forte. Os poderosos começaram a ter medo do povo e deixaram o poder. O poder é aquela coisa que faz a gente mandar nos outros, às vezes é bom, outras vezes é muito ruim. É bom quando é usado para fazer o bem de todos. É ruim, quando quem tem o poder só pensa nele mesmo e nos seus amigos, sem se importar com a maioria das pessoas. Então, quando o povo tem o poder, através dos seus representantes, é bem melhor, porque se eles não trabalharem direito, o povo escolhe outros.

Pois é, um belo dia, tantos anos atrás, nós, o povo, conseguimos voltar ao poder, voltar a ser donos do nosso nariz e do nosso destino. Sabíamos que não seria nada fácil. E então começamos a trabalhar muito, cheios de vontade e de esperança. Esperança em nós mesmos e nas nossas capacidades.

O nosso País sempre teve problemas mil: pobreza, subdesenvolvimento, escravidão, subserviência, ignorância, subordinação a interesses internacionais e financeiros. Esse sistema acabou gerando grandes diferenças entre a própria população. Vocês sabem muito bem que existe pouca gente muito rica e tanta gente muito pobre. Não é verdade? E como sempre, os mais pobres dos pobres são os que não tem voz para se defender. As crianças, por exemplo.

Antigamente, a criança era considerada como um pequeno adulto. E como tal era tratada. Muitas eram obrigadas a trabalhar escravizadas, outras eram usadas em serviços domésticos nas casas de famílias ricas. Ninguém achava que as crianças tivessem direitos. Ou melhor, ninguém pensava que as crianças tivessem direito aos direitos. Criança, adolescente, garoto, garota, pequeno adulto… tudo igual, nenhuma diferença. E foi assim por muito tempo. Imaginem só que na Constituição Brasileira de 1988, nascida depois daqueles anos terríveis de chumbo, há um artigo que prevê a “proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos“…, ou seja, se o jovem for contratado “na condição de aprendiz” pode exercer um trabalho “noturno, perigoso ou insalubre“. Não é inacreditável? Isso não foi escrito duzentos anos atrás, mas em 1988, na Constituição Brasileira.

E foi assim que muitos estudiosos e pessoas DO bem se reuniram para que as crianças e os adolescentes, tivessem um apoio oficial, o amparo da lei; que cada uma tivesse sua dignidade e os seus direitos garantidos por um conjunto de normas a serem respeitadas, principalmente pelas pessoas que detém o poder, por aqueles que fazem, aplicam e fiscalizam as leis: em 13 de julho de 1990, nascia o ECA, o Estatuto da Criança e do Adolescente.

Na época estávamos todos muito felizes, porque pensávamos que um conjunto de normas conseguisse mudar realmente a sociedade e sua forma de pensar. Tínhamos a esperança de que os direitos declarados se tornassem em breve tempos direitos adquiridos!

Fomos ingênuos. Vocês todos, meus garotos, sabem muito bem como é a vida do dia-a-dia. Cada um de vocês conhece o açoite dos “homens da lei”, a solidão das noites mal dormidas, o medo, a violência, o abandono, o cheiro da droga.

Há alguns dias estava eu na cracolândia. Vi a megaoperação da prefeitura e da polícia para limpar a aérea, para expulsar todo mundo que segundo eles não se enquadra nos seus moldes: a operação limpeza. Vi as armas apontadas contra vocês, todas as armas. O Estado que deveria proteger os mais vulneráveis, mostrava sua face mais violenta. Vi vocês perambulando como larvas a poucos quarteirões dali, sentados, deitados no chão uivando para a lua, chapados, drogados, bêbados de medo e solidão. Aí lembrei quanto é fácil para os detentores da lei e da ordem, para a grande imprensa e a opinião pública, pensar em vocês não mais como crianças e adolescentes – aqueles contemplados no Estatuto – mas sim, como problema social, como problema de saúde pública, como problema de ordem pública, como problema de higiene pública, como problema de segurança pública, como problema, como problema do problema, como problema para ser resolvido, eliminado, uma vez por todas: um problema.

Agora, prestem atenção: tiraram vocês da família, da escola, do convívio sadio com a comunidade, e não somente tiraram vocês de uma vida digna, mas também roubaram sua dignidade. E sendo muito difícil modificar essa atitude, querem escolher o modo mais rápido, fácil e prático para eles: mudar as regras, mudar o Estatuto. Como se um médico botasse a culpa no doente pela própria doença. Para se sentirem mais seguros querem diminuir a idade penal: quanto antes botar vocês na cadeia, melhor.

Parece que não há mais ninguém ao vosso lado. Parece que as vozes das pessoas DO bem foram abafadas pelos gritos medonhos de quem enxerga em vocês a origem de todos os males. Parece.

Depois de trinta e um anos do nascimento do ECA podemos olhar para trás e ver alguma mudança importante que a sociedade, em um imenso esforço coletivo, conseguiu alcançar: a mortalidade infantil, por exemplo, passou de 53,7 (por mil nascidos vivos) a 15,6. O número de crianças registradas ao nascer, ou nas semanas sucessivas, passou de 66% para 95%. O número de crianças e adolescentes fora da escola despencou: de 19,6% a 4,7%. A desnutrição crônica também: de 13,4% a 6,7%.

Foram retirados do trabalho infantil quase seis milhões de crianças, entre 5 e 17 anos de idade.

Atenção, atenção! Esses números foram levantados antes da pandemia. Mesmo assim, é para deixar a gente orgulhosa.

A nota triste de tudo isso é que a violência contra vocês, meus queridos, mais que dobrou: o assassinato de jovens entre 10 e 19 anos passou de 5 mil para 12 mil mortes ao ano.

Reverter esse quadro terrível é o grande desafio da nossa época. A primeira coisa a ser feita é parar definitivamente de considerar vocês, meus garotos, como problema. Vocês não são o problema, mas sim a solução.

Por isso temos que continuar lutando para que as leis e as normas previstas sejam cumpridas, para podermos realmente comemorar juntos uma nova esperança para cada um de nós. Podem contar comigo.

 

*Edith Moniz é professora, educadora, pedagoga, dedicou sua vida às crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social. Fundou uma escola itinerante para que os jovens expostos à violência das ruas possam encontrar e produzir as ferramentas do resgate da cidadania. Em ocasião dos trinta e um anos do Estatuo da Criança e do Adolescente, mais uma vez, a professora Edith, reúne seus alunos para que saibam que não estão sozinhos.