Discurso proferido por Vito Correddu no 8º Simpósio do Centro Mundial de Estudos Humanistas: “Um novo humanismo por um novo mundo – intercâmbios plurais de um mundo em crise”, evento online, de 16 a 18 de abril, com intervenções de várias partes do mundo. A intervenção de Vito Correddu foi no dia 16.

O ser humano é um problema do ser humano

Ao longo da história, o humanismo foi considerado um movimento cultural que colocou o ser humano no centro de suas preocupações.

Se o ser humano é o elemento central do humanismo, ainda não está claro como e em que medida ele serve de base aos valores que propõe. Em outras palavras, o que fundamenta os valores que caracterizam o humanismo no decorrer da história, como, por exemplo, liberdade, igualdade, desenvolvimento dos conhecimentos ou recusa da violência? A dignidade do homem do Renascimento repousa sobre o que? No entanto, o ser humano parece um sujeito que não merece qualquer outro comentário e esclarecimento, como se a filosofia, a antropologia, a sociologia, a psicologia e as neurociências já tivessem dito tudo o que havia para se dizer. A antiga definição de ser humano, zoon logon echon, então traduzida por animal racional, é suficiente para definir o ser humano? Somos animais? Somos máquinas termodinâmicas? O que é ou o que deve ser o ser humano para o humanismo? Isso que se assemelha a uma dissertação filosófica não aplicável, tenta responder uma questão que nos toca bem de perto: “quem somos nós?”

A seguinte apresentação visa contribuir, de modo breve, com essas questões, tomando por base o humanismo universalista de Mário Luiz Rodriguez Cobos (Silo)

Relato

Somos humanistas. E o somos porque o ser humano está em nosso coração. Nos ocupamos e nos preocupamos com e pelo ser humano. Ao cuidarmos do ser humano, formulamos uma ética, uma moral. Definimos valores e com base neles lemos a realidade e formulamos nossas análises, fazemos nossas propostas e denunciamos o desumano e o anti-humano.

Quando afirmo que somos humanistas, não me refiro a um humanismo em particular. Todo humanismo que surgiu na história humana, todo momento humanista que a história conseguiu contar, teve como elemento comum a preocupação central com o ser humano.

Nesse sentido, tomamos a liberdade de considerar como humanismos todos aqueles momentos da história humana que, nas diversas civilizações, viram surgir um certo interesse pelo ser humano. E com o auxílio dos historiadores e dos antropólogos, hoje em dia podemos constatar a existência de momentos humanistas que antecederam o humanismo renascentista, não apenas na Europa, mas também no antigo Egito, na América pré-colombiana, no Islam dos séculos VII ao X d.C., ou na China confuciana. 

Porém, é certo que os humanistas do Renascimento europeu não se definiam enquanto tais. Apenas em 1538 a palavra humanista começou a ser usada para designar um certo tipo de estudioso, e apenas em 1808 foi cunhado o termo humanismo.

No decorrer do século XX houve o florescimento dos humanismos, sobretudo no âmbito estritamente filosófico. No início, ainda não existiam movimentos de opinião que se reconhecessem e se autodefinissem humanistas. Só a partir dos anos 1980, inspirado no pensamento de Mário Luiz Rodrigues Cobos, mais conhecido pelo pseudônimo literário de Silo, nasce o Movimento Humanista, e quase ao mesmo tempo encontramos os primeiros Partidos Humanistas e o nascimento da primeira Internacional Humanista, em 1989.

Hoje em dia, o termo humanismo se desdobra em diversas formas. Fala-se de humanismo não apenas no campo filosófico, político, econômico e educacional, mas também na agricultura e, inclusive, na gastronomia, quase sempre acompanhado do adjetivo novo. Atualmente o humanismo, ou pelo menos a palavra humanismo, parece alcançar um certo consenso inexistente no passado. E é assim que pouco a pouco se ouve falar sobre a necessidade de um novo humanismo nos discursos de diversos líderes políticos e religiosos.

Longe de nós julgarmos a bondade dessas afirmações, pois isso nos reduziria a censores e portadores ilegítimos de um suposto verdadeiro humanismo. Ao invés disso, o que nos interessa demonstrar, como já foi dito, é que cada humanismo procura colocar o tema do ser humano no centro das atenções.

Mas se o ser humano é o centro de nossas preocupações e valores, devemos nos perguntar se o que conhecemos do ser humano, se a representação, a experiência e a definição que temos de ser humano, é suficiente e igualmente abrangente e completo, ao ponto de ter esgotado e colocado um “fim” à necessidade de investigação. Em outras palavras, devemos nos perguntar, assim como afirmavam os Adibe, letrados da Espanha muçulmana, se o ser humano ainda é o problema do ser humano?

A história do pensamento ocidental, como nos ensina Heidegger, parece ter sido sugada pelo ente, pelo objeto. Em sua crítica, Heidegger evidencia como todo humanismo é, em última instância, uma metafísica que não conseguiu retirar o ser humano da estreita dimensão do animal racional, ou daquele zoon logon echon de memória aristotélica.

Ele escreve em Carta sobre o Humanismo:

“Por mais que se distingam estas espécies de humanismos segundo as suas metas e fundamentos, a maneira e os meios de cada realização, e a forma da sua doutrina, todas elas coincidem nisto: que a humanitas do homo humanus é determinada a partir do ponto de vista de uma interpretação fixa da natureza, da história, do mundo e do fundamento do mundo, isto é, do ponto de vista do ente na sua totalidade.”¹

A humanitas do homem ainda é pensada, como diria Heidegger, pelo lado de lá e não pelo lado de cá. No sentido de que continua a ser pensada a partir do mundo, do mundo dos entes, das coisas.

Quando se pensa o ser humano pelo lado de lá não se está mentindo, porém não se diz toda a verdade, ou pelo menos, pensa-se o ser humano por um determinado olhar. Em última análise, ficamos na metafísica e o reduzimos a um ente como qualquer outro, observando-o como um fenômeno natural qualquer. O problema surge quando aquele determinado olhar se universaliza ou pretende se impor como fundamento da essência do ser humano.

Se ironicamente imaginássemos o sumiço do ser humano do planeta Terra, não como eventualidade ou perigo iminente, mas como se isso já tivesse acontecido, estaríamos imaginando a Terra, o sistema solar e o universo inteiro continuando a existir. Podemos tranquilamente imaginar o todo sem a presença do ser humano.

Nesse exercício imaginativo, o sumiço do ser humano, pelos dados que a ciência nos fornece, provavelmente não produziria nenhuma mudança relevante no plano cósmico. Obviamente, no planeta Terra, a natureza recomeçaria a recuperar aquele espaço vazio deixado pelo ser humano, mas nada mais do que isso. As leis que sustentam e governam o universo ainda seriam válidas e continuariam a agir sem qualquer transtorno. Se o ser humano é um ente como os outros, o seu sumiço não seria, então, de modo algum significativo, não mudaria uma vírgula na realidade das coisas.

Em última instância, falaríamos do ser humano como de um epifenômeno, cuja extinção, dentro da história da vida neste planeta, se somaria àquela das outras espécies.

No final do jogo imaginativo, ganhamos com precisão um ponto de vista externo sobre o ser humano e, como dissemos, um olhar pelo lado de lá. Um olhar que nos permite pensar a extinção do ser humano como se não fizéssemos parte dela, como se essa extinção não implicasse também o nosso próprio sumiço. Basicamente, nesse exercício, seríamos observadores externos. Estaríamos na perspectiva de quem olha.

Esse experimento da imaginação nos é possível graças à capacidade de abstração do pensamento humano. É um pensamento que nos permite tomar distância, estacionar o tempo e abstrair (ou talvez, nesse caso, seria melhor dizer “extrair”) elementos de um contexto e tirar daí as devidas consequências.

Mas o que aconteceria se experimentássemos a mesma coisa de dentro, do lado de cá? Como, então, é possível imaginar a mesma cena se o observador não existe mais? Mais precisamente, como é possível imaginar aquela mesma situação sem o ser-no-mundo?

No primeiro exercício, o gênero humano tinha desaparecido, mas tinham restado as plantas, os animais, a Terra, os planetas, as estrelas e, daí em diante, o universo inteiro, mas ainda havia alguém observando aquela paisagem, indiferente ao fato de que tudo aquilo lhe dizia respeito. Uma vez que quem observa é o nosso pensamento, e se presume que ele não pertença a categoria do desumano, do não-humano ou do anti-humano, mas ainda esteja na categoria do humano, o que agora pedimos da imaginação é que subtraia o que ainda resta do humano. Tiramos, então, a nós mesmos de cena.

De repente é como se apagassem as luzes. A corrente elétrica é interrompida e sofremos um apagão. A imaginação cessa, incapaz de dizer algo sobre aquilo que não é.

O mundo não tem mais a nossa presença. Mas o que é o mundo sem a nossa existência? Não é nada. Eis que, de fato, o experimento da imaginação é impossível para nós, não porque não somos capazes de imaginar o nada, mas porque o nada não seria um objeto observável sem um observador. É impossível porque tenho que encarar o fato de que continuo a existir, ou melhor, tenho que encarar aquilo que Heidegger chama o ser-aí.

O que absorvo, o que compreendo, quais consequências eu tiro dessa experiência?

Começo a duvidar que o mundo exista para além do ser humano.

Que a ex-sistência precede o pensamento de existir.

Que consciência e mundo, do ponto de vista existencial, pertencem a uma única estrutura: consciência-mundo.

Que o ser humano é um ser histórico, portador e criador de Sentido e significados. O ser humano é um projeto.

Que valores e ética devem advir da particularidade da existência humana.

Tentaremos agora aprofundar essas considerações. A primeira: Começo a duvidar que o mundo exista para além do ser humano.

Não se está, aqui, duvidando do mundo numa lógica metafísica. Não se trata de negar o pensamento científico, portanto, a realidade, mas duvidar de que ele não dependa de um olhar humano. Em outras palavras, não estamos dizendo, por exemplo, que a força da gravidade não exista e que funciona como a ciência nos tem mostrado. Estamos dizendo que a força da gravidade existe na medida em que há um ser humano que a experimenta, e que se não fosse um ser humano que a experimentasse, o efeito que ela produziria seria outro (Silo 1981). Nesse sentido, é possível avançar com a hipótese, a verificar, de que o pensamento metafísico oculta mais do que revela.

Segunda consideração: Que a ex-sistência precede o pensamento de existir.

Isso quer dizer que a reflexão sobre a própria existência é uma abstração do pensamento. O cogito ergo sum é uma dedução no interior do pensamento metafísico. É um pensamento que segue a regra da lógica, mas, como às vezes acontece na lógica, ainda que coerente, esconde a arbitrariedade da escolha dos termos sobre os quais se desenvolve.

Nietzsche já demonstrava como o cogito cartesiano é no mínimo superficial na sua definição, porque resulta de conceitos definidos a priori. Por esse motivo, ele rebate a afirmação de Descartes formulando um tipo de circularidade: “sum ergo cogito: cogito ergo sum”.

A ex-sistência não é uma dedução do pensamento, mas o registro que a consciência tem de si, de seu ser-no-mundo, e precede o pensamento e o fazer no mundo.

Eis como Heidegger descreve a ex-sistência:

“A ex-sistência somente se pode dizer da essência do homem, isto é, somente a partir do modo humano de ‘ser’; pois, apenas o homem, ao menos tanto quanto sabemos, nos limites da nossa experiência, está iniciado no destino da ex-sistência. É por isso que ex-sistência nunca poderá ser pensada como uma maneira específica de ser entre outras espécies de seres vivos; isto naturalmente supondo que o homem foi assim disposto, o que deve pensar a essência do seu ser e não apenas elabora relatórios sobre a natureza e a história da sua constituição e das suas atividades.”²

Terceira consideração: Que consciência e mundo, do ponto de vista existencial, pertencem a uma única estrutura: consciência-mundo.

No experimento imaginativo proposto, quando se subtraiu definitivamente o humano, e a imaginação não conseguiu mais conceber a existência, é possível que tenhamos percebido algo interessante. Podemos ter percebido o ato puro da consciência que buscava o objeto, em outras palavras, a intencionalidade da consciência. E é assim que observamos que a consciência está em contínua atividade em busca dos objetos que compensem a sua condição de finitude.

“A consciência, então, não é uma cópia de realidade, mas uma transformação contínua que opera em dois sentidos: de fora para dentro, por meio da representação operada pela imagem na paisagem interna, e de dentro para fora, por meio da ação sobre a paisagem externa. Concebida assim, isto é, na ação de coordenar os dados dos sentidos, da memória e dos centros de respostas, a consciência se torna o entrelaçamento destas duas paisagens que definimos como interno e externo segundo os elementos que levamos em consideração, mas que na realidade acabam configurando uma estrutura única, a consciência-mundo. O funcionamento da estrutura consciência-mundo se explica no corpo.”³

O mundo é, então, o destino da consciência humana. Uma consciência que se constitui e se plasma no mundo, porém o mundo a sua volta se constitui e se realiza na consciência humana.

Apenas essa maneira de entender a relação consciência-mundo é que nos permite superar a dicotomia sujeito-objeto ou pessoal-social e restituir a possibilidade de sair do solipsismo e descobrir a intersubjetividade. É ao tomar contato com a ex-sistência e, então, com esta dimensão da intencionalidade, que posso reconhecer a intencionalidade do outro e qualificá-lo como humano.

Quarta consideração: Que o ser-humano é um ser histórico, portador e criador de Sentido e significados. O ser humano é um projeto.

Este ser-no-mundo, esta consciência-mundo, esta ex-sistência não é estática, está antes em devir. Aquela ideia de morte, que o exercício imaginativo nos propôs, não pode aniquilar a intencionalidade da consciência que aparece, agora, como constitutiva do ser humano. A ex-sistência ou está para o futuro ou não está. Nesse sentido, o ser humano se encontra imerso em um processo histórico, ou melhor, ele é esse próprio processo histórico, é ele mesmo o Sentido que tanto procura. Deste ponto de vista, tanto a paisagem natural (incluindo o corpo), quanto aquela social se tornam o berçário de um projeto de humanização. Disso deriva a discriminação entre humano, desumano e não-humano. A partir disso se traça o limite entre liberdade e má-fé.

A esse propósito, qual é a pátria do ser humano? Podemos dizer agora que a sua casa é a Terra? Não é preciso dizer antes que a sua casa, o seu ser-aí, o seu habitar já transcendeu esse limiar?

Quinta e última consideração: Que valores e ética devem advir da particularidade da existência humana?

Se o ser humano não é qualquer ente, se o ser humano é portador de um projeto, isso que chamamos valores e desvalores e isso que chamamos ética só podem partir da ex-sistência. Por que defender a liberdade e a dignidade humana se o ser humano é apenas um epifenômeno na física do universo? Por que promover uma igualdade entre os seres humanos e a diversidade pessoal e cultural se o ser humano não é outro que um animal racional, um reflexo de condição objetiva, uma máquina termodinâmica, um ser vivo cuja essência é determinada por uma série de elementos como o código genético e os circuitos neurais? Por que nunca devemos nos colocar contra a guerra e aspirar a relação não-violenta entre os seres humanos se, no final, tudo termina em nonsense?

Toda teoria que anteponha ao ser humano entidades abstratas tais como Deus, o Estado ou o dinheiro, toda teoria que busque interpretar o ser humano de modo natural, ou que no esforço de interpretar o ser humano estabeleça através de dados reais possíveis analogias com o mundo natural, não só descreve teorias sem fundamento, mas nos oferece, mais uma vez, um humano visto pelo lado de lá, visto de fora. Essas teorias, que mais poderiam pertencer à narrativa mitológica, paradoxalmente são o que há de mais distante da experiência do Mito.

Um Novo Humanismo por um mundo novo exige que seja explicitada a forma como se pensa o ser humano. A qual ser humano estamos nos referindo? Quem somos, então?

A linguagem expositiva nunca conseguirá responder satisfatoriamente a essas questões se estiver presa às regras da lógica e da gramática. Por isso, acho que nem eu mesmo fui bem-sucedido até aqui, porque estamos falando de uma experiência fenomenológica, uma experiência interna, e qualquer descrição acaba quase sempre sendo um pensamento metafísico. Mas para não reduzir o meu discurso, neste Simpósio, a uma mera perda tempo, quero oferecer um trecho de uma obra de Silo que, por meio de uma linguagem poética, nos propõe, a meu ver, uma imagem do ser humano que sintetiza o que se tentou dizer aqui.

Ele escreve: “Criador de mil nomes, construtor de significados, transformador do mundo… os teus pais e os pais dos teus pais continuam em ti. Não és um meteoro em queda, mas uma flecha luminosa que viaja em direção aos céus. És o sentido do mundo. Quando clarifica teu sentido, ilumina a terra. Quando perde teu sentido, a terra se obscura e o abismo se abre.”

Obrigado.


¹ Tradução de Rubens Eduardo Frias, Editora Centauro, 2005.
² Idem.
³ Roberta Consilvio – Psicologia e desenvolvimento da consciência: a evolução possível do ser humano (tradução nossa).

 

Traduzido do italiano para o português por Simone Petry / Revisado por de Beatriz Stein