Após a entrevista há alguns dias com o pacifista israelense Maoz Inon, continuamos com nosso relato “nos bastidores” do It’s now, evento que ocorrerá em Jerusalém (dias 8 e 9 de maio) e que promete ser a maior Assembleia pela Paz realizada no Oriente Médio. Esta é uma entrevista telefônica com o palestino Aziz Abu Sarah, co-organizador da Cúpula pela Paz e irmão “de coração” de Maoz.

Nascido há 45 anos em Al-Eizariya, não muito longe de Jerusalém Oriental, na Cisjordânia, Aziz contou em várias entrevistas sobre a sua adolescência durante os tempos da Primeira Intifada. “Como todo mundo, eu também estava ocupado jogando pedras, e uma vez bati acidentalmente no carro de um vizinho. Nós fazíamos isso para expressar nossa frustração, pois os únicos judeus que conhecíamos eram os soldados que nos detinham regularmente nos postos de controle e, claro, os colonos, que já eram uma grande legião naquele tempo…”

Aziz tinha nove anos quando seu irmão mais velho, Tayseer, foi preso pelas IDF e levado para a prisão. Ele ficou detido por um ano e, algumas semanas após sua liberação, Tayseer morreu em decorrência de “ferimentos internos” – decorrentes das torturas que havia recebido atrás das grades. Em todos esses anos, essa ferida nunca cicatrizou de verdade, mas o ajudou a se envolver com o Parent Circle Families Forum (Círculo dos Pais — Fórum das Famílias), organização israelense-palestina que desde 1995 tem ajudado famílias como a de Aziz, Maoz e muitas outras que perderam entes queridos no conflito, aliviando o trauma da perda através de programas de autoconhecimento de admirável coragem e valor.

Mas, num post recente no Facebook, essa dor ressurge com uma foto dupla — uma dele ao lado do irmão Tayseer, ambos crianças, e uma abaixo, de um palestino de 17 anos chamado Walid, a 63ª pessoa a morrer numa prisão israelense após os acontecimentos de 7 de outubro — e apenas algumas linhas de texto para acompanhá-lo: “algumas notícias são particularmente fortes: desde que meu irmão Tayseer morreu há 34 anos, devido a torturas que sofreu em uma prisão israelense, toda morte em detenção me atinge no fundo do meu coração. Também é o caso deste rapaz, Walid, de cuja morte soubemos pelas razões habituais: tortura de rotina, falta de investigação, corpos devolvidos às famílias com dificuldade, crimes repetidos impunemente…”

Aziz e seu irmão Tayseer

E foi precisamente na sequência dessa perda que Aziz sentiu a necessidade de escrever aquela comovente mensagem de condolências a Maoz Inon, imediatamente após a morte de ambos os pais no massacre de 7 de outubro. Foi assim que esta bela parceria de ativismo pacifista foi posta em marcha em nome da fraternidade, na maioria das vezes em conjunto — perante importantes audiências como nos vários Ted Talks ou na  Arena da Paz, em Verona, convidados pelo Papa Francisco há um ano —; ou mesmo sozinho quando necessário, como será no caso da viagem de Maoz a Paris em poucos dias, mas sempre unidos na urgência para “promover tudo o que for possível para mudar a situação” e na aliança mais ampla possível com tantas outras organizações que têm estado ativas na mesma frente há muito tempo.

Maoz Inon e Aziz Abu Sarah

O que esses dois pacifistas têm também em comum é um histórico de empreendedorismo no ramo do chamado “turismo de paz”, que Aziz Abu Sarah seguiu após formação na Escola de Análise e Resolução de Conflitos da Universidade George Mason. Ele fundou a Mejdi Tours há cerca de quinze anos, agência especializada em viagens “socialmente conscientes” a áreas caracterizadas por uma “dupla narrativa” (ou seja, um ex-conflito que já foi resolvido), e sempre conta de fato com dois guias/intérpretes. São viagens que levarão você não só ao Oriente Médio, mas também à Colômbia, ao Afeganistão e, posteriormente, aos Balcãs e à Irlanda. Uma paixão mais do que um emprego; uma paixão que muitas vezes colocou Aziz no papel de jornalista (para a National Geographicvários programas de rádio+ 972 e outros meios de comunicação), bem como de autor.

Na verdade, um perfil profissional e pessoal muito rico e interessante! Conversamos com Aziz há alguns dias, quando ele estava na Carolina do Sul, sua residência quando não está na Palestina.

—Quando foi concebida essa ideia de organizar uma Cúpula pela Paz? E com tantas organizações envolvidas?

—Houve um momento (depois de 7 de Outubro, e quando os bombardeios já estavam ocorrendo havia algum tempo) em que ocorreu uma reunião de colonos em Jerusalém. Eles já tinham começado a atacar os alimentos e a ajuda destinados a Gaza, mas naquela ocasião a mensagem era clara: “Estamos aqui e pretendemos nos estabelecer também em Gaza”. Foi aí que alguém entre nós enfatizou a necessidade de fazer alguma coisa, e usou precisamente as palavras que mais tarde deram título àquele primeiro grande evento no Estádio Menorah, em Tel Aviv: Chegou a hora! Chegou a hora de reagir e responder da melhor forma possível. Pelo menos para mostrar que existimos, que nem todos são a favor das bombas e dos assassinatos. É hora de quebrar o silêncio, de deixar claro que o que eles estão dizendo não é verdade, que nem todos querem essa guerra. É hora de contar quantos somos, de confirmar que não somos poucos. Na verdade, havia tanta gente presente naquele evento Chegou a Hora, em 1° de julho, que isso marcou a primeira etapa dessa viagem.

—E, no entanto, aqui estamos — 18 meses depois de 7 de Outubro, e menos de um mês antes da sua Cúpula pela Paz, em Jerusalém —, testemunhando o extermínio que vai muito além das piores previsões, depois de que Trump e Netanyahu se reuniram no Salão Oval para fazer negócios como sempre. A coexistência dessas duas realidades diametralmente opostas é tão impressionante…

—É por isso que estamos fazendo o nosso melhor para garantir o êxito completo dessa Cúpula pela Paz não só em termos de participação, mas também de visibilidade. Para isso, precisamos da ajuda de todos porque nenhuma perspectiva aceitável pode vir da liderança que temos. Cabe a nós, portanto, agir e fazer algo para combater esse horizonte totalmente desalentador. É por isso que é importante unir e reafirmar aquilo em que acreditamos, vislumbrar o único futuro possível que é a coexistência, oferecer-nos como exemplo… porque o que nos têm vendido o tempo todo é que os palestinos e israelenses nunca poderão viver juntos, trabalhar juntos, coexistir; que é muito perigoso, uma loucura inimaginável… e, em vez disso, continuamos dizendo: não é verdade, olhem para nós, olhem para estas dezenas de organizações israelense-palestinas. Somos a prova cabal de que é possível viver juntos, trabalhar juntos, planejar as coisas juntos, alcançar resultados juntos. Só nesse contexto haverá um futuro para nossas duas comunidades.

—Ultimamente, você tem salientado a diminuição do apoio ao conflito, especialmente em Israel, onde apenas uma minoria apoia agora a guerra em Gaza. Mas isso vem  ocorrendo também no campo palestino, em que recentemente houve protestos contra o Hamas, com interpretações contraditórias

Pesquisas recentes em Gaza mostram uma clara queda na popularidade do Hamas para menos de 10%, o que seria incrível, mas não surpreendente, dadas as circunstâncias desesperadoras em que o povo de Gaza se encontra desde 7 de outubro. À parte das pesquisas, tenho muitas vezes a oportunidade de falar com amigos que vivem lá e percebo a realidade desse descontentamento. A principal hostilidade é dirigida às IDF e a Israel, é claro, mas muitos consideram o Hamas responsável também pelas condições em que se encontram: sem qualquer proteção possível, sem comida, sem água ou abrigo, sem outra perspectiva senão desaparecer da face da Terra. Eles perderam tudo: perderam suas casas, seus familiares, todos os hospitais foram bombardeados… e, no entanto, seria tolice dizer que o Hamas acabou. Porque é precisamente nessas circunstâncias de desespero e de cerco que cresce a capacidade do grupo de recrutar, como sempre foi no passado: quando perdemos tudo, a nossa casa, os nossos entes queridos ou qualquer esperança para o futuro, tudo o que resta, pelo menos para alguns, é a ilusão de nos defendermos lutando.

É por isso que defendemos que Israel nunca será capaz de destruir o Hamas, pois numa situação tão extrema cada vez mais pessoas se juntarão às suas brigadas. De fato, de acordo com uma estimativa recente, o número de militantes ativos é atualmente o mesmo de há um ano e meio, apesar das baixas sofridas. É hora de pensar seriamente em uma alternativa, devemos dar às pessoas a perspectiva de uma solução política. Acima de tudo, temos de pôr fim à ocupação o mais rapidamente possível, devolver às pessoas sua liberdade, sua capacidade de autodeterminação. Sem estas condições mínimas de coexistência, igualdade, justiça, nada vai acabar com o Hamas.

—Haverá vozes palestinas que representem essa complexidade na sua Cúpula pela Paz? Sei que será difícil para muitos estarem presentes pessoalmente…

—Alguns palestinos estarão lá; certamente estarei eu e outros estarão conectados através de plataformas de internet. Ainda não decidimos que tipo de perspectiva política ou avaliações iremos compartilhar porque, como sabem, dezenas de organizações aderiram a esta chamada da Cúpula pela Paz e cada uma tem a sua própria agenda. Só posso lhe dizer o que nós, Maoz e eu, continuaremos a fazer com a nossa organização Interact International: continuaremos a trabalhar na formação, na comunicação, na mobilização pública como sempre fizemos, em colaboração cada vez mais estreita com outras organizações, como Standing Together, Parents CircleCombatants for Peace. E esperamos que tudo isso resulte numa proposta política, uma necessidade que já tinha surgido antes de 7 de Outubro, porque, como sabem, houve protestos frequentes contra o governo de Netanyahu. Mas só em poder reunir essa coalizão de organizações e energias, isso já significa muito.

—Existe um movimento palestino pela paz? Na Itália, temos a impressão de que é algo bastante presente em Israel, mas existe uma contraparte palestina?

—Temos de compreender que a palavra paz não pode ter o mesmo significado para ambas as partes do conflito. Quando os palestinos falam de paz, significa que querem liberação, igualdade, fim do apartheid e da ocupação, como o próprio Gandhi buscou no seu projeto de liberaação do colonialismo: o método era a não violência, mas os objetivos eram muito claros e inflexíveis.

Outra coisa a lembrar é a estrutura de poder que se reafirma em todas as circunstâncias: o que os israelenses podem fazer e o que os palestinos podem fazer é muito diferente, mesmo em termos de pacifismo. Lembro-me das primeiras grandes manifestações que o Combatants for Peace, do qual também sou membro, organizou em 2006 ou 2007, em Hebrom, na Cisjordânia, e depois em Jerusalém. Milhares de palestinos, havia umas 3.000 pessoas, vieram a Hebrom e, apesar de ser uma manifestação pacífica, foi atacada pelo exército israelense com gás lacrimogêneo. A recepção em Tel Aviv foi muito diferente, o que revela a violência institucionalizada e estrutural que interfere na dinâmica do nosso movimento, embora não possa ser percebida de fora. Para não falar dos meios de comunicação, que se limitam a registar o que acontece dia a dia, mas raramente cobrem as notícias vindas da Palestina com a mesma atenção reservada às de Israel. Isso se aplica tanto aos pacifistas como aos prisioneiros, reféns e vítimas dos atentados. O jogo está sempre contra nós. Tudo isso alimenta a tendência de desumanizar os palestinos, ainda quando valesse a pena destacar aspectos positivos ou personalidades. Mesmo no caso dos protestos contra o Hamas em Gaza nas últimas semanas: a forma como as notícias foram relatadas, aquilo não tinha nada a ver com a paz, era apenas uma forma de afirmar a impopularidade do Hamas e criar uma maior polarização.

—Lendo sobre sua biografia, descobri que há alguns anos você concorreu à prefeitura de Jerusalém… mas não deu muito certo.

—Posso lhe dizer que aquela foi a experiência que, mais do que qualquer outra, me fez perceber como as instituições internacionais apenas aparentemente nos encorajam a fazer algo, mas finalmente não nos apoiam. Quando me candidatei a prefeito de Jerusalém, contactei todos os representantes a que pude chegar a nível europeu, pedindo-lhes que contribuíssem para a viabilidade de eleições justas, porque em Jerusalém pouquíssimas pessoas votam por uma série de razões. Muitos nem sequer sabem que têm o direito de votar, e o governo não tem interesse em lhes dizer que têm. Até há alguns anos, havia dificuldades logísticas para alcançar as poucas vagas disponíveis na Cisjordânia. Era necessário passar tantos postos de controle, ao longo de rotas que exigiam dois ou três ônibus, você pode imaginar quem queria passar por esse inferno. Na última ronda de consultas, algo mudou… mas para voltar à minha história: consciente do montante de financiamento e dos programas que a UE gasta nas nossas áreas para os chamados processos de democratização, aproximei-me das instituições europeias, não para pedir ajuda na minha campanha, mas para pelo menos melhorar a situação no terreno, com campanhas de conscientização, apoio logístico etc. Vários embaixadores pareceram interessados, mas nada aconteceu. Quando tentaram dar seguimento às suas palavras com medidas concretas, a resposta dos seus ministros foi: por que mudar o status quo… Veja, esse é o problema: ninguém quer mudar o status quo até que ele quebre. Agora, que tudo está em mil pedaços, ninguém sabe o que fazer. Mas quando uma oportunidade se apresenta, ninguém a leva em consideração, exceto em raros casos. Lemos nos jornais sobre “a necessidade de os líderes palestinos estarem à altura da ocasião”, mas ninguém fará nada para ajudar esses líderes palestinos. Todo mundo está se perguntando onde está o Nelson Mandela da Palestina, e essa é a questão mais ofensiva pois há muitos Nelson Mandela na Palestina, mas todos estão presos! Esta é a hipocrisia que frequentemente encontro em todo o mundo.

O que Maoz e eu estamos tentando fazer, ao visitar os níveis mais altos da hierarquia que podemos alcançar em todo o mundo, é pressionar europeus, americanos, árabes e outros líderes globais a pelo menos ouvirem e, se possível, encorajarem esses jovens líderes, e darem legitimidade, apoio e reconhecimento a essas vozes. Esta deveria ser a tarefa da política, e aquilo que eu teria buscado se me tivesse tornado prefeiro de Jerusalém. Afastei-me quando vi que as pessoas que me apoiavam estavam sendo ameaçadas e atacadas, e quando percebi que a minha própria vida estava em perigo. Mas foi um contratempo ao longo do caminho e não me impediu de continuar a fazer o que sempre fiz antes, sabendo que outra alternativa é possível.

Como Maoz costuma dizer, A esperança é uma ação. E cabe a cada um de nós tomar medidas para a mudança.


Para saber mais sobre a Cúpula pela Paz em Jerusalém: https://www.timeisnow.co.il/new1-2

Para mais informações ou detalhes sobre a forma de apoiar a iniciativa: info@timeisnow.co.il