ENTREVISTA
Por Joyce Enzler
Para contribuir com o debate sobre Comunicação e Saúde, é imprescindível conversar com jornalistas que colocam a escrita no centro de sua preocupação ética e estética, buscando religar as dimensões profissional e humana no trabalho árduo e ao mesmo tempo prazeroso de polimento da palavra.
Em um momento de ascensão de textos gerados por IA, a atuação desses jornalistas, poetas e escritores, em defesa da produção de conteúdo, pode colaborar tanto com a informação correta sobre saúde como instigar à reflexão sobre a sociedade e seus (des) caminhos.
Neste 7 de abril, Dia Mundial da Saúde e Dia Nacional do Jornalista, Pressenza recebe a jornalista, escritora, poeta e contadora de Histórias que inspiram Juliana Krapp para contar sobre as interseções no seu processo criativo das dimensões narrativas da elaboração jornalística e poética. Além disso, a jornalista fala da complexidade do entrelaçamento entre os campos Comunicação e Saúde para a qualidade de vida da sociedade.
Krapp é assessora da Direção do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz), coordena a plataforma de livros infantojuvenis da Fiocruz Portinho Livre e é autora dos livros Histórias para inspirar futuras cientistas, em parceria com a escritora Mel Bonfim, e Uma Volta pela lagoa, sua estreia na poesia.
Conte um pouco da sua trajetória. Como você trilhou a sua carreira até chegar à Fiocruz?
Nasci no subúrbio do Rio de Janeiro, em 1980, ou seja: ainda sob a égide da ditadura civil-militar. Aconteceram muitas coisas naquela década. Inflação desgovernada, violência urbana explodindo. A censura arrefecendo, mas ainda presente. Guerra Fria, atentados, Chernobil, o avanço da Aids. Mas também a redemocratização, a Constituinte, o rock, a TV Pirata, aquela exuberância cultural dos anos 80. Eu via aquilo tudo acontecendo pela tela da TV e pelas páginas dos jornais, e morria de curiosidade por entender mais a fundo as dinâmicas por detrás dos acontecimentos. Era apaixonada por livros, mas o acesso a eles não era simples. Foi uma época também de certa glamourização da figura do jornalista. Nunca quis ser repórter de TV, que era um desejo frequente entre pessoas da minha geração. Mas desde criança eu fantasiava que teria uma vida cheia de emoções como repórter investigativa ou de cultura, viajando pelo mundo e escrevendo.
O que aconteceu, claro, foi bem diferente. Nasci numa família pobre e sabia que precisaria ter um emprego desde cedo, então fui fazer o Ensino Médio profissionalizante, cursando Construção Civil. Ingressei no primeiro estágio aos 16 anos, e nunca mais parei de trabalhar. Fui compradora de obras, projetista, orçamentista. Vendedora de cursos de inglês. Tive dificuldades em passar no vestibular – na época, o curso de comunicação social era dos mais concorridos. Iniciei o curso de Letras e, um ano depois, enfim passei para Comunicação Social, na Uerj.
Na faculdade de comunicação, enfim achei minha turma. Sou até hoje fascinada pela mágica que acontece na sala de aula, pelo potencial de um ambiente como o da universidade pública. Só que era muito difícil conciliar o trabalho, as horas no transporte público e as aulas noturnas, e até hoje me ressinto disso. Ainda assim, acabei sendo aprovada para fazer estágio no chamado Infoglobo, que na época reunia os jornais Globo e O Extra e a rádio CBN. Foi uma vitória e tanto. Aprendi muito naquele ano, mas, ao fim do processo, não quis ser contratada como repórter. As redações – aquelas, pelo menos – me pareciam ambientes muito elitistas, eu me sentia um peixe fora d’água. Comecei um mestrado e trabalhava com o que dava, para garantir meu sustento: fui redatora do site do Big Brother Brasil, cobria férias em sites de notícias, escrevia para revistas institucionais e projetos de marketing. Entre 2007 e 2009, fui repórter do suplemento Ideias&Livros, do Jornal do Brasil (JB): o emprego que mais amei na vida.
Só que, naquela época, o JB já estava em franco declínio. Assim como a própria profissão de jornalista. Com os salários atrasando frequentemente, pedi demissão e retornei à vida dos frilas e trabalhos temporários. Já estava me aproximando dos 30 anos e entendi que precisava de alguma segurança na vida. Foi quando fiz o concurso público para a Fundação Oswaldo Cruz, onde entrei em 2011 e estou até hoje. Aqui na Fundação, fui editora do Portal Fiocruz e coordenei a Assessoria de Comunicação do meu instituto, entre 2019 e 2023. Ou seja: estava à frente do setor bem no período da pandemia. Foi um dos meus maiores desafios profissionais, e me orgulho de ter colaborado, da melhor forma que consegui, para o enfrentamento daquela calamidade. Também fiz doutorado em literatura, com uma pesquisa que investiga como a ideia de saúde e de doença aparece na ficção brasileira.
Quis contar essa história toda, que ficou meio longa, justamente para desviar um pouco das narrativas que descrevem trajetórias sempre ascendentes e cheias de conquistas. A minha carreira sempre foi como a da maioria das pessoas: em ziguezague, com fracassos e revisões de rota. Mas também com alegrias, motivos de orgulho, desejo de seguir adiante. E, principalmente, a certeza de que a profissão de jornalista só faz sentido se for construída na luta pelo enfrentamento às desigualdades.

Escritora Juliana Krapp. Foto: Bel Junqueira
Como é o seu trabalho na Fiocruz?
Eu atuo e sempre atuei no Instituto de Comunicação e Informação em Saúde, o Icict. A Fiocruz é enorme, um universo, e funciona nessa lógica de institutos: cada um tem um campo de atuação específico. O Icict é talvez o único polo de conhecimento, no Brasil, que faz a junção desses três campos científicos, de forma interdisciplinar: comunicação, informação e saúde pública.
Na prática, nossos cientistas fazem, por exemplo, pesquisas que correlacionam queimadas com problemas respiratórios; coordenam grandes inquéritos em saúde, como a Pesquisa Nacional sobre o Uso de Crack; desenvolvem plataformas de dados em saúde; investigam testemunhos antivacinação, como certos temas aparecem na mídia, como estamos construindo memória no campo da saúde. Também temos um programa de pós-graduação premiado. Um polo de audiovisual em saúde, a VideoSaúde. Coordenamos a Rede de Bibliotecas Fiocruz. E cuidamos de uma joia e tanto: a Seção de Obras Raras da Fundação, que guarda livros e revistas antiquíssimos, temos exemplares até do século 17.
Atualmente, sou assessora da Direção do Icict. Atuo em várias frentes e projetos, como a reformulação do site do instituto e ações de divulgação científica. Coordeno nossa Câmara Técnica de Comunicação, um espaço para debater estratégias para a área. Mas meu xodó é a Portinho Livre: uma plataforma de livros infantojuvenis em acesso aberto, que lançamos em 2023, sob minha coordenação.
Em 2021, eu e a Mel Bonfim, atual vice-diretora de Ensino, publicamos um livro chamado Histórias para inspirar futuras cientistas. Nele, contamos a trajetória de 13 mulheres que são ou foram cientistas da Fiocruz, e que deram contribuições extraordinárias à ciência. É uma obra voltada para crianças, que nasceu no bojo de uma inquietação: os enormes desafios que ainda precisamos enfrentar para termos mais equidade de gênero na ciência. Procuramos falar com crianças e adolescentes porque acreditamos que muito dessa desigualdade já se instaura nessa fase da vida. Meninos são incentivados a serem curiosos; meninas, a serem boas cuidadoras.
O livro fez mais sucesso do que imaginávamos. E foi aí que nasceu a ideia da Portinho Livre. Entendemos que a arte literária pode se unir à divulgação científica, criando histórias que convidem crianças e adolescentes a refletirem sobre temas importantes. Já lançamos um livro que fala sobre vacinação para crianças pequenas. Este mês, vamos lançar uma obra sobre saúde indígena. E eu e Mel estamos trabalhando no segundo volume do Histórias para inspirar futuras cientistas, com outras 17 perfiladas.
Qual a importância de unir dois campos tão importantes para a sociedade, comunicação e saúde?
Cada vez mais, fica evidente a centralidade que a comunicação tem para a saúde. O fenômeno da desinformação é um bom exemplo disso – mas também é só um, dentre vários. Na Fiocruz, nós falamos sempre que o direito à comunicação é essencial ao direito à saúde. O que isso quer dizer? Que, para ter acesso aos seus direitos, as pessoas precisam ter acesso à comunicação, em suas múltiplas dimensões. Precisa receber informações importantes, claro. Saber onde buscar atendimento médico, quando e onde se vacinar, como se prevenir de doenças. Mas também precisa saber como exigir que seus direitos sejam cumpridos. Precisa saber o que acontece no mundo em que está inserida. E, o mais importante: precisa não ser apenas uma receptora passiva dessas informações. Quando juntamos esses dois campos, o da comunicação e o da saúde, é fundamental deixarmos de lado os antigos modelos de comunicação que muitos de nós estudamos na faculdade. Porque uma comunicação associada à saúde, e não apenas subordinada de forma instrumental a ela, precisa criar estratégias para a amplificação de vozes tradicionalmente silenciadas. Precisa levar em conta a complexidade de sentidos sociais e contextos. Precisa ultrapassar a ideia de comunicação apenas como transferência de conteúdo. Há um livro fundamental chamado, justamente, “Comunicação e saúde”, escrito por duas pesquisadoras aqui do Icict, a Inesita Soares e a Janine Miranda, cuja leitura recomendo muito para todos que se interessem por esse tema.
Você também é escritora. Explica quais as diferenças e semelhanças no processo de escrita jornalística e literária.
Meu primeiro impulso seria dizer que são processos muito diferentes, tendo em vista a natureza de ambos. Mas seria mentira. Na minha experiência, a escrita literária e a jornalística não só se irmanam, como se embolam e se confundem.
Existem, claro, diferenças enormes de método, de objetivo, de estilo. Um texto jornalístico tem regras e é escrito após muito trabalho: apuração, checagem, confronto de fontes. Esse tipo de trabalho eu não faço há muito tempo, escrevo basicamente textos institucionais. Mas dá no mesmo, porque são processos parecidos.
Já o texto literário, no meu caso, se desenvolve sem muito método. Mas é justamente nessa diferença que eles se fundem para mim. Muitas vezes eu estou escrevendo um texto institucional – pode ser até um relatório, por exemplo – e uma palavra me salta aos olhos. E então eu sinto um desejo enorme de puxar essa palavra, como se ela fosse um fio, para concatená-la a outras palavras, gerar sentidos que me surpreendam de alguma forma, e com isso bolar um poema.
Além disso, eu acho que meu trabalho como poeta é antes de qualquer coisa um trabalho de investigação. Diferente da investigação jornalística, claro. Mas, ainda assim, investigação.

Juliana Krapp no lançamento do livro de poesias. Foto: Reprodução Instagram.
Como você lida com esse tempo veloz, essa correria exigida pela sociedade, os prazos e o tempo de escrita que envolve reflexão e calmaria também?
Tentando viver um dia de cada vez. É meu mantra, e acho que é o mantra de grande parte das mulheres. Confesso que uma das minhas principais angústias é justamente o fato de não conseguir construir uma pausa para escrever e, sobretudo, para ler mais. Porém, tento não me esquecer de como sou uma pessoa de muitos privilégios. Mesmo eu tendo pouco tempo para a reflexão e a calmaria, esse tempo já é infinitamente maior que o da maioria das outras mulheres desse país.
O que você faz no seu tempo livre?
Eu tenho uma gama bem vasta de amigos, que é algo de que me orgulho muito. Além disso, tenho a sorte de viver numa cidade ao mesmo tempo linda e terrível como o Rio de Janeiro. Uma cidade que está o tempo todo provocando o desejo de estar na rua. Então, no meu tempo livre, costumo explorar as muitas possibilidades do Rio de Janeiro, na companhia de pessoas queridas. Também ouço as histórias e piadas de minha filha, a Lia, uma tagarela indomável de 9 anos. E, claro, às vezes me enfurno em casa para ler e ver filmes. Não tenho do que reclamar.
Atualmente, com a presença das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) em nosso cotidiano, onde todo mundo pode se dizer jornalista, como você enxerga o futuro do jornalismo?
Essa pergunta é muito difícil. Há muitos teóricos que elaboram boas respostas para isso. Eu honestamente não me arrisco a fazer previsão alguma. Esses dias estava lendo “Terra arrasada”, livro em que o crítico americano Jonathan Crary descreve como isso que ele chama de “complexo internético” transforma tudo em mercadoria, e em como estamos vivendo num mundo desencantado. O descrédito no trabalho jornalístico, a precarização das redações, a encrenca que é a infodemia: mais do que tudo isso, eu tenho medo é do desencanto ao qual se refere o Crary. Não existe jornalismo sem encantamento. Um jornalista é alguém que sente a fagulha da curiosidade lhe atiçar de modo incontornável. É alguém que investiga porque acredita que o mundo é um lugar complexo e digno dessa investigação. É alguém que ama estar atento. O que esperar, então, de tempos em que estamos atados à dispersão e à desatenção? Não sei, honestamente.
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