CRÔNICA

Por Guilherme Maia

 

O fundo azul fosco, uma parede esmaltada irregularmente, mas com ares de fotos antigas de casais taciturnos: essa era a moldura turva que cercava Ducão, pastor fundador da Igreja do Poço Fundo do Jacó com sede no Morro da Bitola.

Com seu indefectível terno quadriculado de tergal e a inseparável bíblia envernizada (letras debruadas em ouro) do Complexo de Israel, imposta a voz com a técnica de rouquidão, talvez para parecer um ancião a despeito de Ducão ter trinta e oito anos de idade: é assim que inicia sua oração de bênçãos aos soldados de Cristo da Menina do Brabo – apelido carinhoso da cocaína na área.

Sinto a mão de Deus aqui nesse lugar com vocês, irmãos! Xaralabatéia tetéia!” – e, enquanto despeja sua gramática das línguas de fogo para a proteção da mercadoria e dos soldados do tráfico, surge Billie todo arrebentado, com rompimento das costuras e exposição da tíbia na perna esquerda; olhos injetados de sangue, equimoses generalizadas pelo corpo.

– Você está vivo, irmão! O Pai quer que continue e obre na igreja; vou cuidar dos seus ferimentos e sua alma agora está sob a guarda do Senhor! – Com ar de impositividade condoída, Ducão arregimenta mais um soldado do ADA para o CV, sua facção por obediência ao chamado divino.

– Pastor, está doendo pra caralho! Vou morrer! Me ajude…- urra Billie articulando as palavras com o que restara de sua língua e o rasgo que lhe fizeram no céu da boca.

O líder da igreja chama Lurdinha, a irmã enfermeira que, sempre disposta aos seus chamados, mesmo alquebrada por mais um dia de plantão no Souza Aguiar, surge para assistir o espancado.

Animada pelo espírito de acolhimento, ela retira a camisa do Flamengo e o short azul tipo seleção anos 1970; despeja água de uma garrafa de plástico que alcança com sua mão sobre os borrões de sangue no torso de Billie.

-Você vai ficar bem. Vai voltar para vida e será soldado aqui da igreja; precisamos de pessoas com sua força para evangelizar o Morro da Bitola, – Lurdinha se contrai, pois sente que por suas palavras está tomando protagonismo, protagonismo este que pertence exclusivamente ao pastor; sentindo isso, cala expondo um sorriso acalentador de piedade sincera. Billie começa a estabilizar, o sangue estanca. Lutando contra a dor de seus canais lacrimais intumescidos, chora e chora muito.

Billie fora exorcizado pelo batismo de sangue, faltava agora Ducão descobrir as razões da sentença exarada pela cúpula do tráfico do Comando Vermelho.

Tem que dá! Tem que dá!” – risca o estridente refrão pelo ar do baile funk – “É só abrir as perna! Tem que dá! Tem que dá!”. Naquele meio de névoa espessa e cheiro de virilha e axilas tomadas pelo suor, o pastor surge com seu ar altivo a procura de Dumbo, o chefe da boca.

Passa por todo o compresso salão até se aproximar do criminoso; este com suas quatro esposas, não se constrange de estar com o short arriado em público e com seu ínfimo membro à mostra, sua segunda esposa (uma morena jambo de olhos verdes e ancas largas) acaricia-o mecanicamente.

Ao ver a figura austera do religiosos, Dumbo recolhe seu pênis e dispensa suas quatro esposas. Ducão lança seu grito de guerra que usa para desarmar as facções opositoras ao CV: “Quem não vive para servir! Serve para viver!” E, ato contínuo, questiona o criminoso no intuito de esquadrinhar o passado de seu novo soldado.

– Estou aqui para salvar a alma de Billie para o Senhor! – afirma em sua discrição de voz impostada de falso-velho.

– Ele pôs cal e Pó Royal na mercadoria e se infiltrou no ADA para fazer comédia com as nossa qualidade; o teu cara aí tava para nos sabotar! – dominado pela ódio, Dumbo alteia sua voz e com seus dentes cavalados rosna – Aqui ninguém bagunça com nós! Aqui é tudo dois!

– Essa alma é minha agora, sou responsável pelos seus atos e comigo Billie pertence a minha igreja, pertence ao senhor Jesus. – dramatiza Ducão imprimindo um tom parecido com o do Richard Burton no filme Manto Sagrado.

Dumbo nunca compreendeu o que motivava o pastor a se intrometer tanto no meio do tráfico; não era comum líderes de igrejas intervirem em tal ambiente; mas, como todo bom chefe de tráfico, conhecia o passado anterior à conversão de Ducão.

Sabia que, quando garoto, notabilizou-se como olheiro do tráfico e progrediu rapidamente a vapor. Com agilidade de praticante de parkour, saltava de laje em laje disparando rojões com instinto de preservação do comércio de seu empregador. Já como vapor vendia e estimulava o consumo como nunca ninguém tivera tanta retórica de convencimento; muitos vícios foram iniciados e desenvolvidos por Ducão em seu tempo de tráfico.

Quando granjeou o status de soldado, de cara conquistou a Índia – tatuagem-emblema que permitia portar fuzil de calibre 762×51, – a morte enevoava seus olhos; sentia o prazer orgástico do assassinato com calma cartesiana: saber esperar era seu forte, nunca fora afoito.

Com muito desgosto que Ducão à época aceitou o cargo de gerente da boca. Seduzido pelo frio de matar, o prazer de contrações, retesamentos e ligores cadavéricos, foi obrigado a assumir a gerência pela confiança do chefe e pela necessidade de maior controle – todos sabiam que Ducão não estava naquele trabalho por ganância, ele desejava algo, algo incompreensível para seus pares, o que inspirava confiança.

Quando em meados dos anos 1980 percebeu que muitas pessoas de bem estavam se agremiando em igrejas neopentecostais para se protegerem do assédio do tráfico e dos maus policiais: resolveu frequentar a proeminente Igreja do Poço Fundo do Jacó.

Elevado pelo sentimento das orações e prédicas dos pastores, sentiu-se acolhido e amado, um amor desconhecido até então; muito inspirado subia o velho Cruzeiro do Morro da Bitola para meditar e sentir a forte onipresença do Senhor.

Dar-se a si pela glória do Pai, pela salvação da humanidade inteira. Por muito tempo Ducão esteve envolto na irresistível renascença de si próprio. Aprendeu a dominar seus instintos de predador e encheu seu coração de piedade cristã. Ser um só com todos os irmãos, pregar a paz a todos, ele nunca mais seria o mesmo…. Até que…

Havia homens de honra entre os pastores da igreja, ou melhor, todos eram bons e militantes na caridade e na adoração ao sentido maior do que é dito ser Deus: amor! Porém, dentre tantos, estava Fagundes, pastor que viera de Guadalupe.

Certo domingo, após o culto, Ducão estava ainda no altar confidenciando com o Senhor, quando viu Fagundes conversando com o contador da igreja; o diálogo versava sobre confundir o patrimônio da pessoa jurídica da agremiação religiosa com os bens pessoais do pastor e, numa comunidade de pobres destituídos, em apenas uma tacada, embolsou como seus dois terços da arrecadação dos fiéis, simplesmente uma fortuna!

Isso já escapava ao conhecimento de Dumbo e o desenvolver do entendimento desse diálogo de Fagundes foi o que determinou em Ducão tanta atividade de religioso em intercâmbio com o tráfico.

Com esse enfoque, o líder religioso seria construído sobre falsas bases. Manteve o amor e a caridade como seus orientes, mas a ânsia de poder levou-o a ser um agente do Comando Vermelho; um sacerdote cujo fito seria o de arregimentar soldados das outras facções para a sua, por meio do resgate de proscritos e condenados à morte pelas sentenças das cúpulas do tráfico de drogas do Morro da Bitola.

Ficou rico e, sem que os chefes das bocas sequer imaginassem, era o dínamo da droga e das almas do povo. Respeitado entre os fiéis e pastores que nunca imaginariam o que se passava no pensamento daquele homem tão casto, era, por outro lado, endeusado pelos chefes do CV.

Billie se tornou mais um soldado do tráfico redimido e abençoado, Billie seria mais um dos servos do Senhor, ou mais diretamente, do próprio Ducão.

Nessa toada, Ducão começou a expedir carteiras de identidade pela igreja, e refez a sua, adulterando seu nome para Duncan, uma vez que tinha às suas costas um mandado de prisão em aberto.

Com o comando de deter o pastor me pus a caminho da Igreja do Poço Fundo do Jacó.

Isso juntaria meu destino de soldado da UPP ao daquele apóstolo oscilante entre bem e mal. Eu, Gracco, policial do Estado do Rio de Janeiro.

Contato: guilhermesinatra69@gmail.com.