Embora obter território seja a motivação mais óbvia do Kremlin, a anexação também está ligada ao fortalecimento da posição energética da Rússia, tanto regional quanto globalmente.

Por John P. Ruehl*

Depois que as forças russas tomaram a região de Kherson, na Ucrânia, no início de sua invasão, um oficial ucraniano chamado Kirill Stremousov foi empossado como vice-chefe do novo governo.

Em um vídeo no YouTube publicado em maio, Stremousov declarou sua intenção de que Kherson fizesse parte do território russo, declarando: “Vamos integrar o máximo possível na Federação Russa. Todos estes cidadãos na região de Kherson terão o direito de obter a cidadania e passaportes russos para que possam fazer parte de um Estado que tenha o potencial de fornecer assistência social e segurança estáveis.”

Uma anexação oficial, como na Crimeia, favoreceria a estratégia do Kremlin de destacar o apoio local à Rússia no sudeste da Ucrânia e retratar o governo ucraniano como ineficaz em grande parte de sua região fronteiriça. Além disso, a Rússia provavelmente usaria a anexação para legitimar a nacionalização da valiosa infraestrutura energética ucraniana que a Rússia detém atualmente.

Em todo o país, as forças russas e pró-russas têm atacado de forma implacável a indústria energética da Ucrânia. Dias antes do início da invasão, militantes pró-russos atacaram a usina termelétrica de Luhansk (TPP) e destruíram uma ponte ferroviária em Vasylivka, no sul do país que fornecia carvão à usina. As forças russas tomaram brevemente a usina nuclear de Chernobyl (ainda usada para processamento de resíduos nucleares) horas após o início da guerra, enquanto em 5 de março uma usina em Okhtyrka foi danificada de forma irreparável.

A usina termelétrica Kryvorizka, na cidade de Zelenodolsk, também foi atacada recentemente por forças russas e pró-russas, resultando em um incêndio que danificou as operações. E em Mariupol, onde as forças russas ganharam controle total há pouco tempo depois de cercarem a cidade por três meses, a usina siderúrgica Azovstal localizada na cidade foi extremamente danificada durante o conflito.

As instalações de armazenamento de combustível ucranianas têm sido alvos frequentes das forças armadas russas, juntamente com subestações, geradores e linhas de energia. Ataques cibernéticos pela Rússia também afetou gravemente os fluxos de eletricidade na Ucrânia.

Mas o destino da maior usina nuclear da Europa perto da cidade ucraniana de Zaporizhzhia mostra as verdadeiras ambições do Kremlin com a infraestrutura energética da Ucrânia. Embora as autoridades ucranianas tenham sido capazes de conter um incêndio na usina que começou logo após o início da guerra, a instalação ficou sob controle russo na primeira semana de março.

Em 18 de maio, o vice-primeiro-ministro russo Marat Khusnullin disse que a Rússia integraria a usina nuclear de Zaporizhzhia se a Ucrânia não pagasse pela eletricidade que produzia. A intenção do Kremlin de conectar a estação à rede elétrica da Rússia foi descrita como uma “doce ilusão” por Leonid Oliynyk, porta-voz da Energoatom, operadora de energia nuclear da Ucrânia.

Mas com apenas dois de seus seis reatores atualmente operando, os acontecimentos na usina de Zaporizhzhia minaram ainda mais a capacidade da Ucrânia de garantir acesso à energia. A usina gera cerca de metade da energia nuclear ucraniana e um quinto da eletricidade do país. Mesmo que o país mantenha o controle sobre a maioria das linhas de energia elétrica provenientes da usina, elas serão inúteis se a Rússia a desligar e mais tarde for capaz de integrá-la com sua própria rede.

A apreensão da infraestrutura energética ucraniana foi replicada em áreas ocupadas pela Rússia no país. As forças russas também assumiram o controle da usina hidrelétrica Kakhovka e a usina de cogeração em Luhansk. Grande parte do centro industrial da Ucrânia fica no Leste, que também é onde estão localizados seus enormes depósitos de carvão, petróleo e gás. Os depósitos adicionais de energia no Mar Negro, bem como a infraestrutura portuária da Ucrânia na região oriental, sucumbiram ainda mais sob controle russo desde fevereiro.

Até 2014, a Ucrânia dependia de combustíveis fósseis e outras fontes de energia russas. Embora tenha reduzido significativamente essa dependência desde então, as empresas ucranianas continuam relutantes em desistir das taxas de trânsito que os recursos russos exportados para a Europa geram ao passar pelo seu território. Isso apesar da crescente alavancagem da Rússia, que ganhou com a construção de novas rotas de trânsito para a Europa nos últimos anos, principalmente a TurkStream e as redes originais de gasodutos Nord Stream.

Após a eleição do ex-presidente ucraniano Viktor Yushchenko, que assumiu o cargo em 2005, a Ucrânia tentou reduzir sua dependência energética da Rússia de outras maneiras. Isso incluiu planos para sincronizar o sistema de energia da Ucrânia com a rede elétrica da Área Síncrona Continental (CESA) até 2026, um plano que foi acelerado após a anexação da Crimeia em 2014. No entanto, a guerra ucraniana acelerou ainda mais esse processo, com uma “sincronização de emergência” sendo iniciada em março.

A conclusão deste projeto removerá permanentemente a Ucrânia do sistema IPS/UPS, uma rede de transmissão síncrona de alguns países da CEI (Comunidade de Estados Independentes), dominado pela Rússia e permitirá que ela receba eletricidade da Europa.

Não foi, portanto, coincidência que a invasão russa na Ucrânia ocorreu em um momento crítico neste processo. Em 24 de fevereiro, como parte de um teste de três dias, a rede elétrica ucraniana foi desligada da rede elétrica russa à qual estava conectada há décadas. Em poucas horas, as forças russas começaram sua invasão, com a Ucrânia incapaz de retornar ao sistema IPS/UPS.

Isso exigiu a sincronização experimental dos sistemas de energia ucraniano e moldávio com a CESA em 16 de março, mas a sincronização completa provavelmente está a anos de distância. Essa sincronização exigirá que os operadores de transmissão trabalhem recursos de controle de frequência, testes adicionais de segurança, acordos regulatórios e de mercado de energia e outras medidas para garantir a interoperabilidade a longo prazo. No entanto, a invasão russa acelerou significativamente esta iniciativa.

Embora o Kremlin, sem dúvida, soubesse que não poderia impedir este acontecimento, sua campanha militar é parte de uma estratégia mais ampla de cimentar sua influência energética onde quer que possa. Expandir sua rede de energia para a Ucrânia e apreender infraestrutura local complementará a influência da Rússia em outros estados pós-soviéticos. Isto é precisamente prevalente na Bielorrússia, que ainda depende bastante dos recursos russos para funcionar e tem acordos lucrativos de taxas de trânsito com o Kremlin.

Além disso, durante a União Soviética, “o transporte e outras infraestruturas logísticas da Ásia Central foram direcionadas para a Rússia Europeia”, o que significa que o acesso da região centro asiática aos mercados europeus depende muito da boa vontade da Rússia. E através da União Econômica Eurasiana liderada pela Rússia, o país pretende estabelecer um mercado de energia comum entre os Estados-membros. Tomar o controle de algumas das mais valiosas infraestruturas e reservas energéticas da Ucrânia ajudará a garantir o domínio energético regional da Rússia.

Sem a ajuda ocidental, o setor energético da Ucrânia já teria desmoronado, o que a tornaria incapaz de continuar com a guerra. O Kremlin pretende, portanto, fazer com que o Ocidente pague pela situação energética volátil da Ucrânia, à medida que os preços da energia continuam a subir. O Congresso dos Estados Unidos aprovou recentemente a ajuda de US$ 40 bilhões para a Ucrânia, seu sexto pacote desde o início da guerra.

A Comunidade Energética da Europa também criou recentemente um Fundo de Apoio à Energia da Ucrânia que será financiado pela UE, instituições financeiras internacionais e empresas privadas e corporações. O Ministério de Energia da Ucrânia afirmou que os fundos “serão usados para restaurar a infraestrutura energética que foi danificada ou destruída por consequência dos confrontos no território da Ucrânia“.

Mas a guerra continuará a ter um efeito escalonado no preço da energia, e esse efeito será sentido de forma mais aguda em países sem reservas significativas. A Rússia continuará mirando a infraestrutura energética da Ucrânia, e Kiev não poderá contar com a Europa para fluxos de eletricidade se sua situação piorar. A sincronização com a CESA também pode colocar toda a rede em risco se a Ucrânia for desestabilizada.

Mas a Rússia também visa preservar o máximo possível da infraestrutura energética da Ucrânia, para que possa ser usada no país e nas regiões que forem anexadas. Embora a Rússia tenha que gastar recursos significativos para atualizar e integrar essa infraestrutura, os benefícios imediatos e de longo prazo de reforçar sua própria segurança energética e minar a da Ucrânia dessa forma são claros.

As disputas de pagamento entre a Rússia e os clientes europeus de recursos aumentaram significativamente desde o início da invasão. Mas as vastas reservas russas permitiram que ela fizesse incursões com países como Índia e China, ajudando-a a construir em cima de anos de expansão do comércio de energia. Ao oferecer seus preços competitivos a sua clientela asiática em troca de recursos vitais, a Rússia espera que grande parte da comunidade internacional olhe para o outro lado enquanto tenta expandir seu império energético na Ucrânia.


Este artigo foi produzido por Globetrotter.

* John P. Ruehl é um jornalista australiano-americano que vive em Washington, D.C. É editor colaborador da Strategic Policy e colaborador de várias outras publicações de relações exteriores. Atualmente, ele está terminando um livro sobre a Rússia que vai ser publicado em 2022.

 

Tradução do inglês por Doralice Silva / Revisado por Hélio Parente