Confira entrevista com a filósofa Silvia Federici, que visitará ao Brasil em outubro, sobre a possibilidade de um renascimento da caça às bruxas e o papel do capitalismo no esgotamento da terra e dos seres humanos

Por Susana de Castro*

Existiria um renascimento da ‘caça às bruxas’? A ideologia do ‘feminismo natural’ sedimenta a exploração do trabalho feminino? Há vias de transformações possíveis em meio às formas capitalistas de produção e reprodução? Alicerçada nestes questionamentos, esta entrevista com a intelectual feminista Silvia Federici, autora de Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva (Editora Elefante, 2019), aborda os limites do capitalismo e o resultante esgotamento dos seres humanos, mas também aponta para o que acredita serem formas de “reprodução em comum”, caminhos mais cooperativos experimentados por mulheres na organização das atividades reprodutivas. Federici estará no Brasil para participar do XIX Encontro da Associação Nacional de Pós-graduação em Filosofia (Anpof), que acontece entre os dias 10 e 14 de outubro, na cidade de Goiânia.

– Em Calibã e a Bruxa: Mulheres, Corpo e Acumulação Primitiva, você correlaciona o processo de confinamento da terra com a caça às bruxas na Europa. Você acredita que a prática do assassinato sistemático de mulheres, como ocorre atualmente em Ciudad Juarez, no México, ou o aumento dos feminicídios no Brasil, seria um renascimento da ‘caça às bruxas’, uma forma de intimidação, para que as mulheres não ameacem os lucros das empresas capitalistas, exploradores de mão-de-obra feminina mal remunerada?

– Sim e Não. Sim, no sentido de que ambas são campanhas de terror contra as mulheres, com inevitáveis consequências disciplinares. Mas a caça às bruxas foi o resultado de decisões institucionais, organizadas desde cima, pelo Estado e pela Igreja, e encorajaram a população a denunciar mulheres suspeitas de serem bruxas, e foram promovidas com base numa ideologia que desvalorizava abertamente as mulheres. Assim, as suas consequências foram mais destrutivas.

– Em O Patriarcado do salário: notas sobre Marx, gênero, e feminismo você mostra que Marx não percebia o trabalho reprodutivo como trabalho; o capitalista lucra tanto com a exploração do trabalho assalariado quanto com a exploração indireta do trabalho não assalariado da esposa que cuida do lar. Você concorda que uma das bases da naturalização da exploração do trabalho feminino no ambiente doméstico é a ideologia do ‘feminino natural’?

– Sim, é um mito que as mulheres são essencialmente cuidadoras. No entanto, o fato de que durante gerações as mulheres fizeram este trabalho – educaram crianças, cuidaram dos idosos, etc. – nos dá uma compreensão mais profunda das necessidades das pessoas, e o que é necessário para a reprodução diária da vida quotidiana.

– No O Patriarcado do salário: notas sobre Marx, gênero, e feminismo você também fala da relação entre ecologia e capitalismo e como as formas capitalistas de produção representam uma ameaça à sobrevivência do planeta. Seria correto dizer que só o fim da acumulação de capital e das guerras pelos recursos naturais poderiam trazer alguma esperança de sobrevivência para o planeta?

– Sim, o capitalismo (como Marx assinalou) esgota a terra à medida em que esgota os seres humanos. O capitalismo ameaça a nossa reprodução, envenenando o solo, as águas e o ar que respiramos. A destruição do ambiente é também a destruição das nossas vidas. Soube recentemente que as abelhas que estão em vias de extinção são as que estão sendo empregadas pelos produtores industriais de mel que as estão “sobrecarregando”, enviando-as para todo o país (nos EUA), onde quer que surjam novas colheitas de flores. No mesmo sentido, o capitalismo explora os seres humanos sem se preocupar com a sua reprodução (foi necessária uma luta pesada para estabelecer a ideia de que que os trabalhadores têm direitos), o capitalismo, portanto, explora o ambiente natural e os seres humanos que dele dependem.

– As feministas decoloniais indígenas da América Latina defendem os valores comunitários como caminho para uma boa vida e como caminho para uma relação de igualdade entre os gêneros. Em seu último livro Reencantando o Mundo, feminismo e a política dos comuns, você fala de experiências comunitárias em todo o mundo. Você acha que essas experiências comunitárias são capazes de parar a aliança neoliberal entre o Capital e a extrema-direita em todo o mundo?

– Em meu trabalho, não falo genericamente de ‘experiências comunitárias’. Falo de ‘reprodução em comum’. Falo das muitas formas pelas quais as mulheres já organizam as atividades que reproduzem as nossas vidas de uma forma mais cooperativa e comunitária. Vejo este tipo de luta como essencial tanto para criar novas relações sociais, produzindo, já no presente, o mundo pelo qual lutamos, quanto para superar a forma como temos estado isoladas umas das outras nas nossas atividades reprodutivas – com a família nuclear, com o mito da privacidade – enfraquece a nossa capacidade de resistência.

– Nunca sugeri que a mudança social/política que deve ocorrer para criar uma sociedade não exploradora pudesse ser obtida apenas por um tipo de luta.  Precisamos de diferentes movimentos e diferentes tipos de luta. Mas a construção de novos comuns (reprodutivos) continua a ser um elemento indispensável na criação de um mundo justo/igualitário.


* Susana de Castro é professora da UFRJ e presidente da Anpof

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