Acho que todos nós conhecemos um pouco da lenda de Narciso. O mito grego conta que um jovem rapaz era tão vaidoso que acabou por se apaixonar pelo próprio reflexo, desprezando toda a beleza existente em seu entorno, concentrando-se exclusivamente na autoimagem que projetava. A história termina, de forma trágica, quando Narciso morre no rio em que passou seus dias de contemplação. Talvez não tenhamos hoje sequer um pequeno córrego límpido o bastante para vermos nossa própria imagem, porém questiono: seriam os celulares e seus filtros uma espécie de novo leito derradeiro e nós, novos Narcisos?

Ainda sobre mitos, muito se diz sobre povos indígenas que receiam quando são fotografados, pois crêem que essa ação seria capaz de não apenas capturar sua imagem, mas sua essência, sua alma. Nós, ditos povos civilizados, muitas vezes debochamos de tais culturas, lamentavelmente. Porém, quando analisamos todas as questões inerentes ao assunto, talvez a sabedoria indígena, mais uma vez, pode não estar completamente errada como se acreditava.

A publicidade preconiza que a imagem é tudo. “Uma imagem vale mais que mil palavras”, repetimos à exaustão. Não é à toa que nós, seres humanos, estamos tão atentos, ou até aficionados, por como nossos corpos são representados e – mais ainda – percebidos pelos nossos pares.

Não há nada errado em querer se sentir bem, ter uma boa aparência ou algo assim. O problema ocorre quando existe uma busca por padrões, muitas vezes, inatingíveis. No passado, nossa sociedade impunha padrões de beleza que exigiam sacrifícios físicos nocivos à saúde, que geravam problemas graves como a bulimia, por exemplo. Normalmente, tais cobranças são mais impostas sobre as mulheres.

Hoje, isso ainda acontece, mas talvez em uma escala um tanto menor – mas não suficiente ainda para seguirmos sem preocupações – em razão de campanhas de saúde e por uma maior conscientização da população. Por outro lado, existe o crescimento exponencial de outro recurso que nos apresenta, e consequentemente nos cobra atributos que, algumas vezes, não temos: as máquinas fotográficas dos celulares.

A facilidade com que podemos fazer registros fotográficos é incomparável com outrora, quando possuíamos os famosos filmes de 12, 24 ou 36 poses e na maioria das vezes sem revelação instantânea! O que fosse fotografado era fotografado e ponto final. Não havia a hipótese de – ou pelo menos era incomum – tirar dezenas de fotos semelhantes e escolher a melhor delas para uso, como fazemos hoje.

Além da facilidade de suprimirmos o processo de revelação, também temos, então, uma alta capacidade de captura e armazenamento das fotografias. No entanto, nem isso parece ter sido o bastante para resolver o “problema” da busca pela foto perfeita. E é aí que a manipulação da realidade, ou simplesmente os filtros entram em ação.

Aquele filtro engraçadinho ou que disfarça uma pequena imperfeição faz maravilhas, não? Porém, a alteração de nossa imagem é uma experiência negativa, principalmente para os jovens, pois os incentiva a se submeterem a uma exposição demasiada, beirando um exibicionismo ou cultura do espetáculo, através de uma projeção irreal de sua imagem. Essa ilusão, por sua vez, tem como objetivo a sua aceitação num determinado grupo por meio da construção ficcional de uma imagem. É um castelo de cartas pronto para se desmoronar com qualquer brisa leve.

Quando observamos o filtro sob a ótica da camuflagem, podemos compreender que talvez haja uma necessidade paradoxal de, ao mesmo tempo mostrar-se, exibir-se, bem como esconder-se, já que o verdadeiro “eu” não é aquele que se apresenta nas telas. Isso pode trazer um prazer ou paz temporários, contudo, em breve, a pessoa encontrará outro defeito em si que julgará necessário ser corrigido. É como se o seu corpo viesse a se tornar um grande empecilho para viver.

Do ponto de vista psicológico, o uso prejudicial de filtros pode estar associado ao surgimento de diversos distúrbios, dentre eles os alimentares e os transtornos emocionais. Não são poucos os casos de jovens que apresentam quadros de depressão ao constatarem que na vida real são diferentes da imagem que “vendem” nas redes sociais com as fotografias filtradas, segundo pesquisa do Hospital Santa Mônica de São Paulo.

Os filtros comuns hoje em dia, como os do Instagram e Snapchat, nasceram para serem uma ferramenta divertida e inofensiva para usar uma “fantasia”. Nos primórdios, eram orelhas de coelho, bigodinhos de gato, purpurinas esvoaçantes, entre outros, cujo objetivo era apenas de ser lúdico, não ludíbrio.

Hoje, vemos que os filtros avançaram a ponto de envelhecer, rejuvenescer, trocar o sexo, a cor, o que você quiser. Isso muda completamente a forma que nós vemos o mundo e, sobretudo, vemos a nós próprios. Diz-se que postar nos dias de uma hoje uma fotografia sem nenhum filtro é um ato de extrema coragem ou até um movimento político, de conscientização ou autovalorização. Muitos influenciadores passaram a defender a corrente de que não se deveria usar filtros. A hashtag #nofilter, por exemplo, é amplamente utilizada nas redes sociais.

Esse movimento contra a tecnologia dos filtros, inclusive, fomentou a iniciativa de se criar uma alternativa de rede social em que se proíbe o uso de tal técnica: a BeReal (em tradução literal: seja de verdade).

Essa rede social em ascensão nos Estados Unidos, além de não estimular ou permitir o uso de filtros, restringe cada usuário a uma única postagem por dia, diminuindo a exposição exagerada de sua imagem. A rede obteve um crescimento de 315%, desde dezembro de 2021, e atualmente já conta com uma base de aproximadamente 2 milhões de usuários.

É claro que os filtros continuam sendo amplamente usados e difundidos por personalidades da internet. Nas últimas semanas, a cantora Anitta, por exemplo, ajudou na “viralização” de um filtro no Instagram (originalmente criado no Snapchat) cujo algoritmo transforma a expressão de qualquer pessoa em choro. Seria engraçado, se não fosse triste…

Não é preciso, infelizmente, um filtro para que fiquemos tristes. Basta, apenas, uma olhar mais atento à nossa realidade que, naturalmente, poderemos ser contagiados pela lamúria. Talvez seja a hora de vivermos mesmo uma vida sem filtros.

No fim, sejam ou não os celulares e filtros vilões, torço para que não nos comportemos como Narcisos que perdem suas vidas contemplando suas próprias imagens, pois no dia em que a tela do celular apagar ou a água do rio estiver turva, como lidaremos com aquilo que achamos que somos?