Cooperação cautelosa, desconfiança persistente e conflito direto têm caracterizado a relação sino-russa por centenas de anos. Contudo, junto às motivações naturais para a colaboração, uma animosidade compartilhada contra os Estados Unidos garante que as relações amigáveis vão durar.

Por John P. Ruehl

O século 21 presencia o estabelecimento de relações de “colaboração” entre a China e a Rússia, com os benefícios dessa nova parceria superando as diferenças históricas entre esses dois países que compartilham o objetivo comum de diminuir a dominância dos Estados Unidos (EUA) nos assuntos internacionais.

A China e a Rússia têm, historicamente, mantido uma relação conturbada, visto que a Rússia, em conjunto com o Japão, com os impérios europeus ocidentais e com os EUA, impuseram à China, no século 19 e no início do século 20, o que veio a ser conhecido como uma série de “tratados desiguais”. Estados estrangeiros forçaram a China a concordar com a maioria das suas demandas comerciais e territoriais e, ao contrário das outras potências, a fronteira terrestre compartilhada com a Rússia amplificou a ameaça russa à China.

O apoio soviético ao Partido Comunista Chinês durante a Guerra Civil Chinesa, em conjunto com os esforços mútuos de fomento a uma revolução comunista global, instigou um breve período de cooperação sino-soviética após a década de 1920. No entanto, depois da morte de Joseph Stalin em 1953, e após as tentativas soviéticas de promover a desestalinização, as relações entre a China e a Rússia azedaram. A consequente cisão sino-soviética resultou em conflitos mortais na fronteira e em tentativas conflituosas de assumir a liderança do mundo comunista. A normalização das relações com a China pelo presidente estadunidense Richard Nixon, na década de 1970, revelou o quanto a relação sino-soviética havia regredido.

O colapso soviético, entretanto, instigou a reaproximação entre Pequim e Moscou. A Rússia, claramente o país mais fraco após a dissolução da URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), optou por resolver suas disputas fronteiriças pendentes em favor da China, pavimentando o caminho para relações amistosas. Além disso, a rivalidade ideológica entre Pequim e Moscou, originada pelo desejo antagônico de liderar o mundo comunista, minguou na medida em que a ideologia foi abandonada na antiga URSS e alterada, por meio de reformas, na China. Em 2001, a China e a Rússia assinaram um tratado de “amizade e cooperação”, renovado em 2021. Enquanto áreas de tensões entre estes dois países permanecem até hoje, Pequim e Moscou continuam a cultivar relações construtivas a fim de promover seus interesses diplomáticos, econômicos, políticos, militares e, principalmente, seu desejo mútuo de minar o poder dos EUA nos assuntos internacionais. “Tanto a China como a Rússia consideram os EUA um agressor hipócrita que tem a intenção de diminuí-los a fim de manter a hegemonia estadunidense,” disse Einar Tangen, analista político de Pequim, conforme artigo publicado na Al Jazeera.

Enquanto isso, a economia constitui um pilar da moderna aliança sino-russa. O comércio entre a China e a Rússia alcançou pela primeira vez 100 bilhões de dólares em 2018, o que ambos os países pretendem aumentar para 200 bilhões de dólares até 2024. A fronteira terrestre compartilhada provê à China e à Rússia o benefício adicional de ajudar uma à outra a contornar as rotas marítimas globais controladas pelos EUA. A maioria do comércio entre a China e a Rússia tem sido baseado na exportação de energia. O petróleo, o gás natural e outras commodities russas passaram a ser essenciais para a economia massiva e crescente chinesa; já as exportações chinesas para a Rússia consistem, em grande parte, de maquinário e eletrônicos. Outro aspecto da crescente ligação entre estes dois países são os empréstimos da China para a Rússia, que se tornaram particularmente vantajosos para a Rússia, tendo em vista os grandes obstáculos enfrentados pelo país para obter crédito desde a imposição de sanções pelo Ocidente, em 2014, “em resposta ao apoio contínuo de Moscou aos separatistas do leste da Ucrânia,” segundo o The Guardian

A China e a Rússia também se comprometeram com uma estratégia de “desdolarizar” o comércio internacional e diminuir as suas vulnerabilidades às sanções estadunidenses. Os dados do Banco Central e do Serviço Federal da Alfândega da Federação da Rússia (Federal Customs Service) demostram que, no primeiro trimestre de 2020, “a participação do dólar estadunidense no comércio entre a Rússia e a China ficou abaixo de 50% pela primeira vez já registrada”, segundo o Financial Times, comparado à 2015, quando “aproximadamente 90% das transações bilaterais [entre a Rússia e a China] eram realizadas em dólar”. Ao invés disso, recentemente, as transações comerciais entre esses dois países têm sido realizadas, principalmente, em euros, em rublos russos e em renminbi chinês.

Empenhados em reduzir sua dependência do dólar estadunidense, Pequim e Moscou também procuram contornar o sistema de pagamento da Sociedade de Telecomunicações Financeiras Interbancárias Mundiais (SWIFT), dominado pelos EUA. Após vários bancos russos serem banidos da SWIFT, em 2014 (junto a ameaças de banimento total da Rússia), o governo russo introduziu o Sistema Nacional de Cartões de Pagamento (NSPK), atualmente conhecido como Mir, para processar transações com cartões na Rússia. Ainda que em transações internacionais “os cartões produzidos em associações de marcas com o sistema internacional Maestro, o UnionPay chinês e o JCB japonês”, possam cada vez mais serem utilizados, a Rússia também introduziu o Sistema de Transferência de Mensagens Financeiras (SPFS) em 2014, como alternativa ao SWIFT. Embora majoritariamente utilizado pelos bancos russos, o Banco da China também está conectado ao SPFS.

Ademais, a China lançou o Sistema de Pagamento Interbancário Transfronteiriço (CIPS) em 2015, e, desde então, 23 bancos russos juntaram-se ao sistema. Ambos os serviços processam somente uma fração do total das transações do SWIFT. No entanto, o lançamento pela UE do seu próprio sistema de pagamento em 2019, o Instrumento de Apoio a Trocas Comerciais (INSTEX), e as ofertas chinesas-russas de colaboração com ele têm minado a percepção tradicional do domínio imbatível no comércio internacional pelo SWIFT.

A Rússia também tem desfrutado de um bom desempenho das vendas de seus equipamentos militares para a China, visto que esta vem mantendo um acúmulo bélico constante durante as duas últimas décadas, devido, particularmente, às restrições enfrentadas pelas empresas ocidentais ao exportar para a China. Como o maior fornecedor estrangeiro de equipamento militar da China, a Rússia ajudou-a a alcançar uma capacidade significante de negação de acesso e área (A2/AD) ao largo do litoral chinês, e a uma mudança no equilíbrio de poder entre os EUA e as forças chinesas no Leste Asiático. Exercícios militares conjuntos russo-chineses, que aumentaram consideravelmente ao longo da última década, serviram para desafiar as percepções convencionais do domínio militar dos EUA na zona Ásia-Pacífico.

Diplomaticamente, a China e a Rússia procuram se apoiar nas organizações internacionais. Nas Nações Unidas, a China e a Rússia frequentemente votam em conjunto em assuntos cruciais, como aqueles relacionados à Síria e a Hong Kong. Além disso, Pequim e Moscou têm procurado usar seus próprios organismos internacionais, como a Organização de Cooperação de Xangai (OCX), com oito membros e criada em 2001, para controlar os assuntos internacionais sem a interferência dos Estados ocidentais. A China e a Rússia têm, também, apoiado os chamados “Estados Párias”, como a Venezuela, o Irã, a Síria e a Coreia do Norte. Acordos sobre armas, apoio diplomático, redução de dívidas e outras medidas ajudaram a China e a Rússia a minar as tentativas dos EUA de isolar e enfraquecer tais países, o que ajudou a coordenar uma oposição global contra a ordem estadunidense.

Apesar de seus objetivos comuns e das vias naturais de cooperação, vários problemas entre a China e a Rússia ainda persistem. A China diminuiu as importações militares da Rússia nos últimos anos, e desenvolveu uma indústria doméstica capaz de competir com a russa nos mercados internacionais. E, embora a Rússia mantenha a vantagem militar na Ásia Central, o uso de empresas militares privadas pela China, com o objetivo de defender os projetos da Iniciativa Cinturão e Rota (BRI, no inglês), começou a desafiar o domínio militar tradicional da Rússia na região.

Os investimentos chineses na Ásia Central e no que restou da antiga URSS também desgastou o domínio econômico russo na sua esfera tradicional de influência. Ademais, a crescente demanda energética chinesa permitiu aos exportadores de energia da Ásia Central diversificar e se afastar da infraestrutura energética controlada pela Rússia, explorando outros mercados europeus. E, enquanto a Rússia tem conseguido, até o momento, convencer a Mongólia e os países da Ásia Central a manter suas bitolas ferroviárias no padrão russo (portanto, garantindo a influência do Kremlin no comércio ferroviário transfronteiriço), as tentativas chinesas de alterar o status quo mostram outra área de disputa  entre a China e a Rússia. As aquisições territoriais russas na Manchúria exterior no século 18 também são fontes de discórdia em alguns círculos políticos de Pequim, em que tanto o Tratado de Aigun e a Convenção de Pequim configuram entre os “tratados desiguais”.

Ainda assim, os benefícios atuais da relação sino-russa superam quaisquer motivos para comprometê-la. A necessidade russa de diversificar recursos e fluxos financeiros encaixa perfeitamente com a demanda energética chinesa. Ambos os países temem o isolamento frente às outras grandes potências mundiais e procuram legitimar seus interesses na arena internacional. Junto com a sensação de segurança de ter uma parceria positiva com um vizinho poderoso, o desejo compartilhado de desafiar os EUA nos assuntos mundiais levou a relações entre os dois países, descritas pelos líderes chineses e russos, como “a melhor na história”.

Com o Ártico como uma rota de comércio viável, Pequim e Moscou provavelmente encontrarão outras razões para combinar-se política e economicamente. Enquanto isso, o respeito chinês pelas iniciativas russas, a Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC) e a União Econômica Eurasiática (UEE), pode ajudar Pequim e Moscou a alcançar um compromisso adequado que permita que a China auxilie a Rússia no desenvolvimento da sua esfera tradicional de influência. A desconfiança chinesa e russa a respeito do seu passado complicado não será, portanto, suficiente para desfazer a cooperação atual e para arriscar suas oportunidades futuras.

Este artigo foi produzido por Globetrotter.


John P. Ruehl é um jornalista australiano-estadunidense residente em Washington. Editor contribuinte da Strategic Policy e de várias outras publicações especializadas em assuntos externos. Atualmente, está terminando um livro sobre a Rússia, a ser publicado em 2022.


Traduzido do inglês por Edmundo Dantez / Revisado por Graça Pinheiro