CRÔNICA

Por Marco Dacosta

 

Era noite em Nova York, dezessete graus negativos e eu me encolhi no sofá com uma xícara de chocolate quente nas mãos. Do outro lado da ligação no celular estava Susi – aquela mesma da aventura no Panamá, Lisboa e tantos outros mundos. Desaparecida há meses de todos, ela voltou a tona de uma de suas imersões nela mesma, invocando poderes xamânicos, relatando contatos com o mundo sobrenatural que acontecia em rituais coletivos, através dos sonhos, do uso da bebida nixi pae – ayahuasca.

Susi sabe da minha falta de ligação com os temas esotéricos e espirituais – e talvez por isso, despido de qualquer crença humana eu seja o melhor ouvinte para qualquer amigo religioso. Sou uma madeira virgem, uma mesa vazia de superstições e dogmas, perfeito para receber informações sobre mergulhos místicos de qualquer pessoa, sem julgamento, sem interferência de nenhuma fé já estabelecida no meu interior. Acredito que por isso Susi sente-se tão tranquila para relatar suas experiências xamânicas, embebidas de chás e ervas, canções e estrelas. Sempre no céu, com diamantes, lisérgicos, delírios de amor e êxtase.

Naquela noite Susi foi sequestrada, levada para uma tenda no meio de uma fazenda. Uso sequestro no bom sentido – se existir. Foi levada, conduzida, abduzida de sua vida na grande cidade e mergulhou no isolamento, nas danças e nas sessões em que a bebida da Ayahuasca é o início de uma longa jornada interior. É como se agarrar em um cipó, só que do espírito.

Meu grande medo nessas viagens lisérgicas é que o bilhete nunca parece ser de ida e volta. Tenho sempre medo de embarcar e não voltar, da perda total do controle do meu corpo e alma. Susi já não tem esse medo, pelo contrário, às vezes parece que nem quer voltar. Seria o mundo de lá mais sedutor? Quando tive delírios devido a uma medicação, internado em uma cama de hospital, me lembro de sentir meu corpo voar, de ver as coisas e pessoas de ângulos diferentes. Dizem os médicos que as reações a certos antibióticos podem se aproximar dos delírios alucinógenos provocados por plantas e raízes. Não sei – foi uma viagem involuntária, que sobrevoou cidades totalmente brancas, monumentos e pessoas vestindo roupas do século passado. Uma outra amiga exotérica, Ellen – sim estou cercado por eles – me disse que o corpo foi deixado e minha alma voou ao passado, por outras vidas. Tudo era lindo, azul e branco e confesso que não pensava em voltar. Como nos sonhos, não há consciência de ter saído do corpo.

Susi murmurou ao celular – tinha poucos minutos para explicar: anote aí – me disse – e me passou dezenas de áudios, fotos, relatos. É sempre assim: some por meses e depois vem como uma pororoca desaguando toneladas de imagens e sons. Eu, recuperado das minhas viagens que nem escolhi fazer, ouço com calma, vejo as fotos das transformações de corpo e alma. Susi, que antes havia relatado estar em um céu de diamantes, ampliou sua viagem e embarcou nos tambores das tribos amazônicas, transpirando, de branco, cercada de fumaça, cheiro de patchouli e rendas. Não sou seu biógrafo, mas adoro acompanhar suas fases, todas muito ruidosas, cheias de mudanças drásticas. Dessa vez ela me promete voltar com outro corpo e rejuvenescida – mas ela é tão jovem ! sempre repito a mim mesmo, com tantos anos a mais.

As viagens esotéricas de Susi, Ellen, Carla e tantas mulheres que me cercam são importantes para mim. Mesmo não conseguindo acompanhar esses mergulhos no desconhecido, na numerologia, nos astros e ervas – mesmo desconhecendo os orixás, santos e guias, me aproximo mais para acompanhar os efeitos dessas coisas na vida delas do que por curiosidade nesses fenômenos. É impressionante como a fé age nas pessoas, como invejo essa capacidade de atribuir aos céus, aos deuses e a natureza coisas que eu só consigo ver pelo aspecto físico. Já não é questão de quem está certo ou errado. É uma capacidade de ver além do corpo, que algumas pessoas possuem e outras não. Por alguns momentos, ouvindo relatos, chego a acompanhar as crenças e imaginar um mundo diferente.

Susi me relata os efeitos da Ayahuasca, dos remédios, dos tratamentos, dos cristais, da lua. Eu, do sofá com a neve caindo lá fora, me transporto para a floresta, cheiro de mato, mormaço após a chuva. Sinto o barro no pé quando ela dança com o vestido branco com bordados, meu corpo vibra com os tambores, com as batidas de mão. Ela me diz como seu corpo tem se transformado, como tem usado cristais, ervas, folhas, sons e luzes. Ela experimenta tudo fora do seu corpo enquanto eu distante e no frio, tento manter meu corpo aquecido e sereno. Ela me conta dos xamãs, em sua prática etno médica, que utilizam a fumaça do tabaco, capaz de embriagar os espíritos e, assim, liberar o espírito humano preso – e ouço os cantos dos Matis, Marubos, Catuquinas, Caripunas. Todas as tribos dançam na minha sala esta noite.

Talvez essa noite seja nossa primeira aventura virtual – depois de tantas loucuras físicas e presenciais. Adaptados a tempos pandêmicos ela enche meu celular de imagens e sons e eu fico no sofá deslizando meus dedos em suas experimentações. Susi pode até desaparecer novamente, como sempre faz nos momentos que não sabe explicar seus mergulhos – mas pelo menos agora eu tenho uma explicação mais convincente. Ela nunca me abandona, faz viagens por lugares que eu nunca poderei ir, dançar como eu não poderia dançar. Viemos – se viemos – a esse mesmo tempo e mundo para experimentar coisas diferentes e depois falar sobre elas, trocar figurinhas. Não invejo a sua capacidade de sair do corpo – como ela não inveja meus pés firmes no solo. Somos o que uma amizade deve significar, como qualquer amor deveria ser – peças que se encaixam. Delírios que se completam.

Susi perdeu o sinal no meio da floresta. Com certeza depois dos batuques voltará a me ligar. Deixe a menina dançar me diz uma voz interior. Deixe a menina voar.