CRÔNICA

Por Marco Dacosta

 

Centenas de trilhos caminham na mesma direção até chegarem na estação central da Filadélfia. Eles se encontram e se afastam, aproximam-se lentamente sem que nenhum vizinho da estação perceba as movimentações frenéticas da madrugada.

Os trilhos são muito familiares: filho e neto de ferroviários crescemos sentindo o cheiro de graxa das oficinas de trem. Diz a lenda familiar que meu avô materno carregava por toda madrugada um lampião – ele e dezenas de outros – inspecionando os trilhos que saiam da estação central, por outras quinze ou vinte estações. Passavam a noite limpando os trilhos de materiais que pudessem causar danos às locomotivas. Pedras, madeiras, lixo. Tudo não poderia escapar desse time de lanternas a mão e as calças sujas de tinta de fuligem.

Os sapatos gastos pelas extensas caminhadas noturnas, os uniformes manchados. Anos depois, quando as máquinas foram equipadas com um gancho que ia à frente das rodas retirando entulhos, o velho time dos salva trilhos teve que desaparecer. Meu avô foi promovido a um escritório da oficina, mas nunca se recuperou da profissão que lhe foi arrancada pelo progresso. Da janela da estação via os trens cada vez mais modernos chegando, cada vez menos precisando das mãos humanas para limpar seus caminhos.

Volto ao presente, quase um século depois. Estamos em outro país, o inverno se aproxima e em nada lembra as quentes noites de verão do Rio de Janeiro, quando no pós guerra aqueles homens marchavam pela noite para salvarem a ferrovia. Naquele tempo as máquinas, não somente as pessoas, poderiam ser salvas.

O futuro não mudou muito as ferrovias. Seguem caminhos de aço e pedras, máquinas exalando vapor e carregando pessoas e caixas. Vagões lentos cortam ainda montanhas carregadas de minério e lixo.

Thomas mora próximo aos trilhos da estação da Filadélfia e escuta no século vinte e um os mesmos sons da minha infância, os mesmos ruídos que meu pai escutava. É sempre um silêncio profundo, seguido de um quase imperceptível deslizar das rodas de aço brilhantes nos trilhos. Algumas vezes as peças se encaixam. E vem o ruído do encaixe, o click que conecta um vagão ao outro. Thomas nas suas noites de insônia coleciona esses ruídos, sabe que depois do deslize vem o clique. E quando não acontece? O trem parou.

Thomas também escuta a mudança de rumo dos trilhos – exatamente como se faz desde os tempos do velho oeste, hoje não mais feito por alavancas manuais, mas por computadores. Luz vermelha, luz verde, luz laranja. Alguém olha para um imenso painel de luzes e retas e envia sinais que mudam os caminhos dos trilhos e impede que os trens se chocam. Os vizinhos da ferrovia já conhecem os horários e as sequências. Alguns que vivem muito próximo das linhas suspensas de metrô em Nova York até dividem seu tempo usando os trens como alertas e sabem quando a cidade está bem das pernas ou quando está em crise. Os trens circulando normalmente são sinais de estabilidade. Grandes intervalos, significa atrasos. Alguém se jogou nos trilhos ? estão renovando aquela linha ?

Conheci Thomas recentemente e conversamos muito, mas a breve observação sobre o que ele ouve a noite antes de dormir, me transportou para um passado que eu nem mesmo vivi. Lembrei das conversas da família que romantizam o trabalho do meu avô nas ferrovias. O homem que pregava uma ferradura de mula no sapato para economizar a sola que ficaria destruída sem proteção. Durante anos ele era identificado pelo ruído que produzia ao chegar: toc-toc-toc, lá vem seu Euclides com seus sapatos a prova de tudo.

A conversa com Thomas sobre a ferrovia me transportou para a moderna estação de Berlim onde sentado em uma tarde de outono, rascunhei a história de Klaus, um amigo alemão do meu pai, que em uma de suas missões no Brasil me presenteou com uma canetinha com um trem dentro, que deslizava em um líquido para cima e para baixo. A história dos sons da Amtrak na Filadélfia me lembrou que a ferrovia é algo que está presente atravessando minha família por gerações e sempre da mesma forma, com seus sons e cheiros, cortando as cidades que vivemos e que amamos. Nova York inclusive se refere ao trem para falar do metrô – ainda resguardando na memória coletiva que uma das primeiras e maiores extensões de trilhos do mundo nascem e permanecem por aqui. Na cidade que nunca dorme ninguém pega o metrô – todos usamos o “trem” seja submerso ou bailando sobre nossas cabeças nesse emaranhado de linhas que desfilam muitas vezes a poucos metros de nossas janelas.

A roda metálica que se encaixa no trilho pouco mudou sua estética. Se automatizou nos movimentos, mas segue emitindo os mesmos sons. Essa noite Thomas vai dormir melhor – é segunda-feira: os trens que vieram de Chicago estão parados na gare, os que chegam de Nova York só chegam às cinco, horário que ele geralmente precisa levantar para trabalhar. Desligo a chamada e desejo uma boa noite de sono ao amigo distante. Essa noite não vou escutar nada, mas basta fechar os olhos e vejo novamente o velho Euclides chegando em casa com seu terno e pasta de couro, promovido e não mais necessário as tarefas noturnas de limpar os trilhos. Quer ouvir histórias daquele tempo? Sim – respondo me agarrando aos seus pés – “me conta como era o barulho dos trens”? Ele sorri. Elas avisam a chegada à estação. As pessoas sorriam e abraçavam os viajantes. Sim, o mundo era mais feliz com o cantar das locomotivas.