OPINIÃO

Por Paolo D’Aprile

 

A história do golpe já está escrita, desde a Lava Jato pra cá sabemos todos seus pormenores, assistimos de camarote à destruição da credibilidade democrática.

Vimos Dilma ser deposta, vimos Temer e sua reforma trabalhista criar milhões de desempregados, fatiar o trabalho, destruir os sindicatos. Vimos a lógica do lucro dilapidar o patrimônio nacional, primeiro arruinando e depois vendendo as estatais mais lucrativas e eficientes a preço de banana, como a Petrobras e os Correios. Vimos a reforma da previdência acabar com a seguridade social, vimos o maior líder popular das Américas ser jogado na masmorra, vimos a eleição do novo fascismo que de novo não tem nada. Vimos tudo. Vimos o ataque do capital especulativo destruir Brumadinho, vimos a Amazônia em chamas e o Pantanal em cinzas. Vimos os irmãos indígenas serem massacrados, vimos as comunidades do Rio pilhadas pelas milícias e fuziladas por helicópteros assassinos. Vimos a cultura brasileira ser humilhada, destroçada em favor do sistema privado de ensino. Vimos nossos museus virar fumaça. Vimos bairros inteiros de São Paulo destruídos pela ganância da especulação imobiliária por terem sido abandonados pelos órgãos municipais que deveriam zelar por eles. Vimos a pandemia ser negada, vimos nosso povo morrer sem oxigênio. Vimos os generais, os mesmos que hoje desfilam em Brasília, fazerem acordes espúrios para ganhar dinheiro sobre a vida de cada um de nós. Vimos enfiar goela abaixo dos pacientes remédios falsos. Vimos a fome voltar com tudo e nosso povo brigando por ossos e cestas básicas. Vimos filas nas vilas e favelas, vimos a força da grana destruir as nossas coisas mais belas. Vimos mesmo. Vimos tudo. Vimos crianças sumir para nunca mais voltar, vimos metralhadoras de soldados atirar contra famílias em seus carros, vimos Marielle em uma poça de sangue e sua lembrança sendo rasgada pelas mãos covardes de arrombados mequetrefe. Vimos a cínica risada do poder tripudiando da dor e do luto do povo brasileiro.

Não é uma palhaçada, gente! Aquilo que estamos assistindo hoje não é uma simples exibição muscular de quem tem histórico de atleta. Seus músculos raquíticos, sua barriga deformada, seu andar trôpego, sua fala empastada por defeitos de pronúncia, não fazem rir. Aquilo que estamos assistindo não é uma ameaça de golpe. O golpe já aconteceu e nós perdemos feio. Perdemos porque não fomos nem somos capazes de reagir. Deixamos que tudo isso acontecesse sem ter a capacidade de coordenar uma resposta à altura da provocação. Porque as provocações desse tipo, reagir não é somente um direito, reagir é um dever.

O desfile militar de tanques de guerra bem na hora da votação sobre a mudança do sistema eleitoral é a derradeira ameaça à sobrevivência democrática da nação. E digo mais, é o dedo apontado para cada um de nós. Não é uma palhaçada.

A história do golpe virou a página. Agora, enquanto os tanques passeiam pelas avenidas da capital do país, nossos inimigos insultam e acusam um padre. Sim, um simples padre que não aguenta mais tanta miséria ao seu redor e decidiu ajudar fisicamente cada uma das pessoas em situação de rua que encontra em seu caminho: abrindo a porta de sua igreja para protegê-las do frio polar que assola a cidade, distribuindo alimentos aos famintos, compartilhando a sarjeta com os viciados de crack. Um padre. Agora é acusado de favorecer o crime organizado. Marmitas e cobertores, abraços e sorrisos, para nossos inimigos se tornaram aliados da maior facção criminosa do Brasil. Dizem isso oficialmente do púlpito da assembleia legislativa utilizando suas prerrogativas de deputados estaduais. Sua fala repugnante é a síntese do golpe, é mais forte que os tanques, é a essência do novo e sempre velho fascismo ao qual não soubemos dar a resposta adequada. Janaina Paschoal ou Padre Júlio Lancellotti. De que lado você está? Os tanques ou a democracia? De que lado você está?

Beth Carvalho, já debilitada pela doença, gravou nos dias do impeachment mais um samba memorável no qual conclamava à nação: Vamos honrar nossa raiz, vamos sair e dar as mãos para salvar nosso país: Não vai ter golpe de novo, reage, reage meu povo!

E assim digo eu e assino em baixo. Agora a luta é pela sobrevivência, a luta é pela vida: Reage! Reage meu povo!