OPINIÃO

Por Nurit Bensusan*

Virou um meme a fala do presidente sobre a transformação das pessoas vacinadas em jacarés. Ora, quem pode, de fato, levar a sério tal declaração, como nos metamorfosearíamos em jacarés pelo condão de uma vacina? Mas, sim, estamos todos nos transformando em “jacarés”: a questão é saber o que é um “jacaré”.

Pensei no começo que se tratava apenas de uma referência ao réptil, o jacaré mesmo, esse animal cujo nome deriva do tupi e quer dizer “aquele que olha de lado”. Com aquela mordida, com a temperatura de seu corpo variando de acordo com o ambiente, não entendi porque o presidente havia escolhido esse animal como resultado da metamorfose dos vacinados.

Pouco tempo depois,  comecei a entender. Primeiro foi o massacre de Jacarezinho: polícia que invade favela, sem planejamento, sem inteligência, transmitindo a impressão de que o que queria mesmo era matar. E matou, muito: 27 pessoas, todas negras. Ignorou solenemente a determinação do STF, que suspendeu as operações policiais nas favelas durante a pandemia,  invadiu, atirou, assassinou. O constante genocídio da população negra do país segue, alguns diriam, como sempre foi, mas talvez não. Talvez haja uma diferença importante, uma diferença de narrativa. Até pouco tempo atrás, as chacinas eram acompanhadas de um horror da sociedade – mesmo que fosse hipócrita e que nada fizesse para mudar alguma coisa – e um discurso oficial de inaceitabilidade, ora a polícia não pode matar assim, as pessoas têm direitos – mesmo que fosse apenas para gringo ver e achar que isso aqui era um país.

A chacina de Jacarezinho não provocou nada disso. A polícia fez um discurso bizarro, dizendo que queria proteger os menores de serem aliciados pelo tráfico, que por sua vez causou apenas alguma estranheza, e um sigilo de cinco anos foi imposto sobre as operações em Jacarezinho. Houve algum protesto, mas bem tíbio. Entendi, naquele momento, que a lógica da chacina de Jacarezinho era o novo normal nessa perversão apelidada de país.

Minha compreensão foi ampliada pelo que aconteceu em seguida em Jacareacanga, no Pará, em uma operação da Polícia Federal, com o objetivo de coibir as atividades garimpeiras dentro da Terra Indígena Munduruku. A PF chegou, ficou dois dias e se retirou. Seu cronograma de operações foi vazado e os garimpeiros puderam se organizar e reagir. Ameaçaram lideranças, incendiaram casas, se manifestando abertamente contra a contenção de suas atividades criminosas. Ao invés de ultraje, a história toda foi acompanhada com indiferença. Quem defende a floresta, sua terra e sua própria vida está abandonado a sua própria sorte pois nem mais no discurso oficial, há alguma solidariedade.

Jacarezinho e Jacareacanga são duas faces da mesma moeda: no contexto urbano e no meio da floresta. Não há lugar mais para a cidadania, nem para os direitos que nem sequer haviam sido conquistados, mas existiam nas narrativas e no imaginário de alguns, que pensaram que haveria um futuro de inclusão. Jacarezinho e Jacareacanga são o novo normal desse lugar. E, nós, que insistimos na vacina para todos, que insistimos na democracia, que insistimos em resistir, somos todos jacarés, alvos fáceis dos que agora se regozijam nesse festim diabólico.

Nurit Bensusan

Sou um ex-humana, diante dos descalabros da nossa espécie desisti da humanidade, mas continuo bióloga. Enquanto isso, reflito sobre paisagens e culturas, formas de estar no mundo e as inspirações da natureza. Além disso, escrevo livros, faço jogos e aposto minha vida em usar a imaginação como alavanca para suspender o céu.