CULTURA

 

 

Por Paolo D’Aprile

 

 

John Cage pediu ao motorista que parasse. A Avenida Paulista, desde sempre, sede do poder económico brasileiro, viu o grande artista saltar e dançar, criança feliz, dona do mundo. Um pouco mais de três quilómetros, reta e larga, a nova artéria urbana foi aberta no ponto mais alto da cidade, no início do século XX, de modo que os barões do café, os fazendeiros, os herdeiros de imensas riquezas provenientes do trabalho escravo, os novos empreendedores sem escrúpulos pioneiros da industrialização incipiente, os comerciantes que através do contrabando conseguiram edificar impérios que duram até hoje, pudessem construir suas mansões, casarões de estilo eclético, quase oriental, com torres e vitrais monumentais, para impor respeito e provocar inveja na população de imigrantes analfabetos, contratados para substituir a mão de obra escrava, recentemente abolida. Ao longo dos anos, as imponentes residências foram substituídas por arranha-céus, corporações internacionais, bancos, escritórios. Avenida Paulista.

Um pedacinho de floresta remanescente é agora um pequeno parque, um oásis verde no concreto e no barulho ensurdecedor de seis pistas e duas faixas exclusivas de ônibus. De baixo da terra, o metrô.

John Cage saiu do carro. Num relance, percebeu que estava diante de algo incomum, uma forma pura, forma em luz, a própria essência da arquitetura. Quatro enormes suportes a sustentar um paralelepípedo, quase oitenta metros de comprimento e trinta de largura, com o pavimento e o teto de concreto, contrastados por quatro paredes de vidro. Uma enorme estrutura, suspensa, flutuante, mas amarrada ao chão por quatro gigantescos suportes pintados de vermelho. Um espaço vazio e transparente suspenso ao vento e, ao mesmo tempo, fruto telúrico das entranhas da terra.

John Cage dançou sob o paralelepípedo de vidro e cimento, um espaço livre que termina abruptamente como o antigo miradouro, o “belvedere” que ocupava aquele lugar. Uma arquitetura em que todo o formalismo é anulado, uma arquitetura em que o olhar pode atravessar o edifício, onde a luz entra e sai numa amálgama perfeita, uma arquitetura em que a estética se torna ética de projeto, e consequentemente do convívio social: o grande espaço livre protegido pelo paralelepípedo suspenso é praça, local de encontro, feirinha de antiquariado, assembleia estudantil, comício sindical, show de rock: coração humano de uma avenida construída para ostentar riqueza, oprimir, confirmar as diferenças sociais.

John Cage dançou e cantou, disse que essa era a arquitetura da liberdade: Museu de Arte de São Paulo, conhecido por todos como MASP. As obras de arte, compradas por um punhado de dólares das grandes famílias europeias arruinadas pela Segunda Guerra Mundial, chegaram ao Brasil pela mão de Pietro Maria Bardi, um estudioso de arte e agitador cultural italiano, amigo de artistas e poetas. Picasso, Van Gogh, Cézanne, Renoir, Botticelli, Raffaello, Bosch, Modigliani, Goya e muitos outros, exigiram um espaço que desse a possibilidade de exaltar a sua importância. O “Museu da Liberdade” foi construído numa única sala, onde as pinturas são penduradas em placas de vidro suportadas por cubos de concreto. Sem paredes para bloquear o olhar que corre livre entre as grandes obras de todas as épocas, colocadas lado a lado numa sincera homenagem à criação artística, Picasso, Giotto, Toulouse-Lautrec, El Greco, Tintoretto, Velásquez, Rembrandt… As pinturas estão suspensas em placas de cristal, para nos deixar livres de perder o rumo no labirinto evanescente dos grandes mestres de todos os tempos. O salão penetrado pelos raios de luz provenientes das paredes de vidro suspensas acima da Avenida Paulista, as pinturas, o interior e o exterior, o tempo e o silêncio.

Hoje Mario Frias está em Veneza. Diz que aproveitará o momento para visitar as igrejas que “acho eu, são muito antigas”. Quando questionado, responde sinceramente que não sabe quem é o brasileiro que a Bienal de Veneza decidiu premiar com Leão de Ouro. Ele poderia ter lido na Internet, com um par de cliques diretamente do seu celular, todas as informações necessárias para evitar um papelão desses. Mario Frias é o Secretário de Cultura do Governo Bolsonaro, cujo primeiro ato oficial foi extinguir o Ministério da Cultura para criar um secretariado especial, agora ocupado por ele próprio, Mario Frias, de profissão “modelo e atriz”. A sua bela foto com ele quase nu, deitado entre as voluptuosas dobras de quentes lençóis, é do domínio público. Hoje receberá em suas mãos o Leão de Ouro. A Bienal de Veneza premia a trajetória de um dos maiores arquitetos do século XX, um artista que dedicou a vida à criação de obras que pudessem envolver a população através da utilização democrática do espaço inerente à sua construção, museus, teatros, centros de convivência, igrejas, praças, edifícios públicos.

Falando de praças, há uma em Milão dedicada a ele. Ou melhor, a ela. Sim, ela, o grande arquiteto, é uma mulher.

Nascida em Roma em 1914. Mudou-se para Milão e começou a trabalhar desde muito jovem com Giò Ponti, dirigiu a revista Domus e tornou-se amiga de Bruno Zevi. Nos malditos anos da ocupação alemã, ela colaborou ativamente com a resistência. Viu a Itália destruída, as ruínas da casa do homem. Quis recomeçar tudo de novo. Chegou ao Brasil em 1946 com o marido: Pietro Maria Bardi, que acabamos de mencionar. E no Brasil construiu o MASP e fez John Cage dançar.

Hoje, o Secretário da Cultura, Mario Frias, símbolo da ruína social, política e cultural, símbolo da escuridão em que caiu a coexistência civil, receberá o Leão de Ouro. Ele irá sorrir e agradecer sem saber a razão.

Morreu em sua cama em 1992, após uma longa doença. Trabalhou até ao fim no projeto da nova sede da Prefeitura de São Paulo. Tinha a ideia de um edifício curvo cuja parte côncava encerraria uma praça onde as crianças poderiam brincar. Pensava num semicírculo em que a enorme parede posterior do edifício seria envolta em plantas trepadeiras e árvores tropicais. Desenhava e pintava suas intuições arquitetônicas para serem trabalhadas mais tarde in loco, onde montava o seu escritório executivo. Gostava de estar rodeada de jovens e estudantes aos quais dizia que a arquitetura feita de ferro e cimento não existe; a verdadeira arquitetura é impalpável, como a matéria dos sonhos.

Seu nome: Lina Bo Bardi.