CRÔNICA

 

 

Por Guilherme Maia

 

 

 

O filme “Ma” Rainey’s Black Botton está na ordem do dia, às vezes isso  acontece, basta lembrar o excelente filme do Clint Eastwood sobre  Charlie Parker nos 80. Viola Davis incorpora a Mãe do Blues. Chadwick  Boseman (infelizmente falecido pelo câncer recentemente) dá uma força  majestosa ao personagem Leeve, trompetista fictício. Por fim, o diretor  George C. Wolfe concentrou toda a obra cinematográfica em seus atores  Davis e Boseman e, com isso, conseguiu alcançar o zênite!

Ainda dando uma pincelada no filme: Rainey está revivida com todo seu  protagonismo de diva inconformada frente à loucura do racismo explícito  e opressor de sua época e que (por mais aberrante que seja) ainda está  por aí nos dias de hoje. Já o trompetista Leeve é obra do autor Augut  Wilson, – trata-se de uma obra de teatro adaptada – retrata a espoliação  do negro americano até em sua criação. Explico: sempre me saltou aos  olhos a primeira gravação histórica do jazz ser de estadunidenses  brancos, no caso a Original Dixieland Jazz Band, realizados em 1917.

Considerando o ícone que Leeve encarna na história temos o tema do  roubo ou da apropriação cultural. Nota-se que o desempenho de seu  trompete está além do simples acompanhamento, o que era regra no  Blues e Rainey é fiel ao gênero, por isso mesmo não permitia os voos que  Leeve quer alçar. Então, Leeve é o Jazz, é Louis Armstrong, King Oliver e  tantos outros deuses, porque a fonte do protagonismo instrumental, do  desenvolvimento da linha rítmica está em suas veias e ele enlouquece por isso.

O final do filme, claro, é uma crítica ao roubo, afinal como pode a primeira  gravação do jazz ser desempenhada por brancos? E a música tocada é o  Jazz, algo desenvolvido pelo entranhamento melódico sincopado da blue  note – a nota indefinível.

Leeve tem isso dentro dele e é oprimido pelo dono do estúdio que, desde  o primeiro momento, encarna o agente da apropriação cultural!

Mas, vamos a GERTRUD “MA” RAINEY.

Tempo: 1920. Primeiras gravações de Blues em estúdio, técnica mecânica  de gravação sem eletricidade. Experimentos com microfones elétricos.  Apenas em 1927 que a Paramount incrementou a gravação elétrica.

Paramount foi onde Rainey fez suas gravações de 1923 a 1928 e nada foi  mais capaz de definir o gênero e a Música melhor do que essas sessões.

Rainey já cantava em cabarés do Sul desde os quatorze anos, ou seja,  bem antes dos anos 20. Ela nasceu em 1886 e faleceu em 1939. Exibia o  domínio da blue note muito antes das primeiras gravações dessa música e já era veterana de trinta e sete anos quando pisou pela primeira vez no  estúdio da Paramount (um selo menor pertencente a Winsconsin Choir  Company).

Não foi a primeira a gravar o blues, esse papel coube a Mamie Smith em  1920 com o CRAZY BLUES. Mas se compararmos a gravação de Mamie  com a primeira de Rainey (BO-WEAVIL BLUES) entendemos o porquê de  Rainey ser chamada de Mãe do Blues estabelecendo um matriarcado que  perdurou por décadas.

Piadinha da época: “finalmente a companhia substituiu a lanterna de  querosene pela lâmpada de energia elétrica no estúdio”. “Ma” teve de  lutar contra a tecnologia primitiva, mas se saiu muito bem, porque seu  fraseado é como o de uma dos melhores locutores e não grita  aleatoriamente seus sentimentos como Bassie Smith. Rainey aconchega  o ouvinte e explica seu sentimento com seu canto, impostado por causa  da falta de suporte tecnológico.

Seu canto forte e acolhedor, sua intenção é a de envolver o ouvinte e,  com efeito, a utilização do Hokum, – a música sacana negra – supre  perfeitamente a falta de qualidade das gravações do estúdio. Como ela  conseguiu isso? Ela é “Ma” Rainey!

Personalidade titânica, um dínamo contra a hipocrisia estadunidense de  seu e de todos os tempos, logrou transpor sua persona ao canto e às  gravações!

Se cotejarmos BO-WEAVIL BLUES e NEW BO-WEAVIL BLUES (primeira  gravação dela em sessão elétrica) não notaremos diferenças!

Sempre fiel ao Blues, não fazia concessão aos músicos proeminentes que  pulsavam por levar as jam para o acetato, porque o dogma do gênero gira  em torno do canto, do lamento do negro. Inclusive esse é o ponto de  tensão com o arquetípico Leeve, este estava em outra vibração e não  poderia viver o que tinha nas veias.

Gravou apenas uma música pop, DADDY, GOODBYE BLUES, que, por sua  vez, era uma releitura de SEE SEE RIDER de 1924, feita por W.C. Hardy em  1925.

Uma coisa que chama muito atenção em GERTURD “MA” RAINEY é que  ela não internalizou o sentimento de opressão, não se curvou a nada e a  ninguém. Levou o Hakum ao seu extremo, pois, na época, gravou SISSY  BLUES, simplesmente relatando o caso de uma mulher que perdeu seu

homem para um homossexual. Para a época isso é impossível de  imaginar e sem precedentes, mas ela fez sem medo.

“Ma” é uma inspiração à liberdade e à emancipação do que nos insiste  em comprimir o peito quando nos encontramos com a força externa do  opressor que só sobrevive e se alimenta por meio de nossos medos.