CRÔNICA

 

 

Por Marco Dacosta

 

 

O avião da Spirit aterrissou como previsto no aeroporto de Fort Lauderdale, na Flórida, com 154 passageiros. Eu estava entre eles e pude sentir a alegria da maioria, que aplaudiu assim que a aeronave tocou o solo. Não era excursão, nem éramos “spring breakers”, os famosos e estridentes estudantes norte-americanos no intervalo de ano letivo. Nosso voo trazia, pelo contrário, idosos, casais e turistas de meia idade que foram vacinados nas últimas semanas e pude testemunhar a euforia que estava ao meu redor. O ar era de muito otimismo. Sobrevivemos ao longo lockdown e quarentena. Fomos vacinados !

Debb, no assento ao meu lado está eufórica para rever os netos, o outro passageiro na janela chora emocionado, só fala de suas filhas, me mostra fotos no celular. “É linda, não é” Parece um avião lotado de prisioneiros de guerra que foram libertados e rumam para casa. No solo nos esperam os que também sobreviveram a tanto tempo sem nos ver. O voo saiu da cidade que foi o epicentro da pandemia em todo mundo. Nenhuma metrópole sofreu tanto como Nova Iorque, com tantas fatalidades e ainda soterrada por neve e um inverno sem fim na sequência. Da minha janela, tantos carros de socorro passando, lembranças de outros setembros e novembros.

Dias antes de embarcar tomei minha segunda dose da vacina contra o covid-19. Sai do posto de campanha no estádio do Yankees, no Bronx, com uma incrível vontade de viajar e se reencontrar com amigos e familiares. Queria abraçar Julie, minha filha, rever as areias finas das praias da Flórida, que me trazem a memória afetiva da infância no Rio. O barulho do mar, o sal no corpo, o gosto da coca cola gelada descendo pela garganta. É como se um verão imenso estivesse dentro de mim clamando por sair, por fugir de um longo inverno, turbinado por isolamento, tristeza e solidão.

Por coincidência minha segunda e última dose foi no dia que completamos um ano do início da pandemia mundial. Eu prometi que não iria ainda falar dos dias de lockdown – acho que é muito cedo – mas queria entender melhor os efeitos psicológicos dos dias seguintes à vacina. Pode parecer uma coisa corriqueira, mas é uma experiência que só meus antepassados tiveram, de poder abraçar o outro sem medo. Me lembro que Euclides, meu bisavô, sobrevivente da gripe espanhola carregou por décadas o medo de “germes”. No meu aniversário de 15 anos ele me deu uma coleção de vinte livros da “História Universal” de Césare Cantu, mas fez questão de “esterilizá-los” jogando querosene antes que eu pudesse ler. As páginas ficaram amareladas e durante anos minhas mãos cheiravam a querosene por causa deles em minha estante. A paranoia do velho Euclides hoje está estampada em todos os olhares. Acho que somente agora, depois de todo um processo de vidas interrompidas, posso entender porque todos, sobreviventes de pandemias e doenças devastadoras, que viram familiares e amigos morrerem, tinha tanto pavor desses seres invisíveis. Germes e vírus se confundiam e se completavam em seus pesadelos.

Fui criado numa época de antibióticos, de doenças erradicadas e fora a tragédia da AIDS, nunca havia tido nenhuma experiência com vírus que se espalha com rapidez e causa tantas mortes. Embora minha juventude tenha sido marcada pela perda de seus ídolos, eram histórias pontuais e longe da minha realidade suburbana. O HIV levou muita gente que conheci mas foi ao longo de anos. Afetou a forma com que as pessoas amavam, mas não como se tocavam e ou trocavam afetos. Essa pandemia, com certeza, deixará sequelas tremendas nas relações humanas e na vida de toda uma geração que teve sua vida paralisada e transformada por luvas e máscaras.

Mas e o voo ? O avião desceu suave, revelando um imenso mar azul no horizonte. Eu saí da aeronave ansioso por abraços, afeto. Os olhares se entreolharam na aterrissagem. Aplausos ao piloto. Depois do lockdown, faço anotações na agenda, listas cidades e lugares a reencontrar. Vou à praia antes, sozinho. Quero tocar com os pés as águas cristalinas do sul da Flórida, sentir a brisa e respirar fundo o cheiro do sal e das algas que se acumulam ao longo da praia, me lembrando que a vida segue seu ciclo, que estou – mesmo que por ilusão – protegido de mais um vírus. Ao longo da vida foram várias vacinas e recursos da ciência que me garantiram o respiro fundo no início das manhãs. Acredito nessa gente que trabalha e estuda tanto para nos manter vivos. Não há homenagem suficiente para esses seres humanos maravilhosos que se arriscam para nos dar novas chances.

E o voo aterrissou, chegou ao destino. Os aplausos vão ficar para sempre em minha memória. Catarse, euforia, alívio. Depois do Lockdown, veio a esperança da seringa quase minúscula que invade meu braço e despeja em mim mais uma conquista da humanidade. Jogo as mãos para o céu. Abraçado os meus, volto a pensar no futuro.