Países de todo o continente Africano estão enfrentando um segundo surto de COVID-19, ligado a uma variante que foi encontrada pela primeira vez na África do Sul. Ela foi detectada em Botswana, Gana, Quênia, Comores, Zâmbia e mais de 20 países não africanos até agora. Existe a preocupação de que as novas variantes, que cientistas acreditam serem mais infecciosas, possam propagar ainda mais o vírus antes do início da vacinação universal. Mais de quarenta países africanos foram atingidos por esta segunda onda e apenas seis deles receberam remessas relativamente pequenas de vacinas. John Nkengasong, diretor do Centro Africano de Controle e Prevenção de Doenças (África Centres for Disease Control and Prevention), diz que o mundo enfrenta “uma catástrofe moral” sem igualdade quanto às vacinas. “É preciso ficar muito claro que nenhuma parte do mundo estará segura até que todas as partes do mundo estejam seguras”, diz ele. “Ou superamos juntos ou pereceremos juntos. Não há meio termo.”

AMY GOODMAN: Este é o Democracy Now! democracynow.org Reportagens de Quarentena . Eu sou Amy Goodman.

Começamos hoje na África, onde países em todo continente estão enfrentando um segundo surto de COVID-19, ligado a uma variante que foi encontrada pela primeira vez na África do Sul. Muitos cientistas acreditam que essa variante seja ainda mais infecciosa. Ela foi detectada também em Botswana, Gana, Quênia e Zâmbia, bem como em mais de 20 países não africanos até agora. Mais de quarenta nações africanas foram atingidas por esta segunda onda, mas apenas seis delas receberam vacinas e as quantidades foram relativamente pequenas. Existe a preocupação de que novas variantes possam espalhar o vírus antes mesmo que se inicie a vacinação universal.

Uma cúpula virtual da União Africana se concentrará neste fim de semana, em parte, na resposta do continente contra a COVID-19. O país do presidente sul africano, Cyril Ramaphosa, é responsável por cerca de 40% dos casos de coronavírus e mortes na África Subsaariana. Uma enfermeira de Johanesburgo descreveu recentemente a terrível situação.

LERATO MTHUNZI: Nossos necrotérios, enquanto falo com vocês, estão lotados. Na verdade, é pior do que estão vendo, há sacos de corpos até no chão

AMY GOODMAN: Nesta quinta-feira, o Presidente do EUA, Joe Biden, enviou uma mensagem por vídeo à cúpula da União Africana prometendo mais cooperação na luta contra o vírus.

PRESIDENT JOE BIDEN: Para um futuro promissor, nós precisamos enfrentar seriamente esse desafio que está à nossa frente. Isso inclui investir mais em saúde global, derrotando a COVID-19 e trabalhando para prevenir, detectar e responder a futuras crises de saúde, e promover parcerias entre a CDC africana e outras instituições para o avanço e segurança da saúde.

AMY GOODMAN: Para mais, nós vamos para Addis Ababa na Etiópia falar com o Dr. John Nkengasong, diretor do Centro Africano de Controle e Prevenção de Doenças (África Centres for Disease Control and Prevention). Ele disse que o mundo enfrenta uma “catástrofe moral” caso as vacinações contra a COVID-19 atrasem na África
enquanto as nações mais ricas vacinam suas populações inteiras.

Doutor, bem-vindo de volta ao Democracy Now! E parabéns pela comemoração de hoje do aniversário de 40 anos da fundação do Centro Africano de Controle e Prevenção de Doenças.

JOHN NKENGASONG: Eu que agradeço. É um prazer estar novamente aqui com vocês.

AMY GOODMAN: Então, você pode começar nos explicando porque descreveu o que poderia acontecer na África como uma “catástrofe moral’?

JOHN NKENGASONG: Eu penso que a situação na África é urgente e está crítica com relação a COVID-19. Se você observar esta segunda onda da pandemia, ela realmente se tornou mais violenta do que o que observamos na primeira onda, com uma taxa de mortalidade mais alta do que a taxa global de letalidade. E a taxa de mortes,
percebe-se que estão mais altas neste último mês, é significativamente maior do que a que observamos durante a primeira onda. Então, a menos que tenhamos acesso em tempo às vacinas, temo que a situação se torne difícil de se administrar mais adiante.

AMY GOODMAN: No último mês, o presidente sul-africano Cyril Ramaphosa solicitou que as nações mais ricas parassem de acumular excedentes das doses de vacinas contra a COVID-19. Ele disse o seguinte:

PRESIDENT CYRIL RAMAPHOSA: Os países ricos do mundo adquiriram grandes lotes de doses de vacinas dos desenvolvedores e fabricantes. E alguns países foram além e adquiriram até quatro vezes mais do que suas populações precisam, com o objetivo de acumular essas vacinas. Tudo isso tem excluído outros países do mundo que realmente estão precisando…. Não estaremos seguros se alguns países estiverem vacinando seu povo enquanto outros não. Temos que agir juntos no combate ao coronavírus porque ele afeta a todos nós igualmente.

AMY GOODMAN: Na webinar do mês passado sobre o financiamento da vacina contra a COVID-19 e a estratégia de implantação da África, o presidente sul-africano Ramaphosa, que também é presidente interino da União Africana, que está realizando sua reunião neste fim de semana, disse: “A ironia dolorosa é que alguns ensaios clínicos para essas vacinas foram realizados na África”. Então, Dr. Nkengasong, fale sobre isso. Fale sobre a África ser usada como local de experimentação, mas ainda, quando se trata de colher os benefícios das vacinas que provam ser seguras, você é o último da fila.

JOHN NKENGASONG: Eu acho que é lamentável. É isso que eu quis dizer quando usei “catástrofe moral” para definir o caminho ao qual estamos seguindo. Em 1996, quando os medicamentos para tratar o HIV estavam disponíveis, demorou 10 anos até que estivessem finalmente disponíveis no continente. E entre 1996 e 2006, 12 milhões de africanos morreram – e, sublinho, desnecessariamente. Acho que devemos nos certificar de que a história, essa página triste da nossa história, não volte a acontecer, principalmente com essa pandemia. Portanto, estamos muito, muito preocupados com a possibilidade de estarmos caminhando nessa direção se algo não for feito e feito com urgência.

Acredito que, em 1963, Martin Luther King disse, mencionou ou caracterizou os desafios que eles tinham naquela época como a “urgência feroz do agora” Eu não conheço nenhuma situação em que vivemos hoje que não atenda a esse cenário, a não ser o acesso rápido e oportuno às vacinas contra a COVID-19 de maneira ampla, não apenas no mundo desenvolvido, mas nos países em desenvolvimento.

E o Presidente Ramaphosa e o Presidente Moussa Faki da Comissão da União Africana estão liderando uma ação para garantir que a África não esteja realmente ficando para trás. Garantimos 270 milhões de doses de vacinas e 400 milhões de doses adicionais de vacinas do Sérum Instituto na Índia. Portanto, estamos progredindo nessa área, mas não será fácil. Temos que fazer um esforço extraordinário e histórico para vacinar cerca de 30% de nossa população antes de dezembro, a fim de começar a retardar a propagação da pandemia na África; caso contrário, as consequências serão muito, muito devastadoras em nosso continente.

AMY GOODMAN: Então, fale sobre os acordos que devem ser feitos com empresas farmacêuticas e outros países. Quer dizer, você tem lugares como Canadá e Estados Unidos que, no final das contas, estão pedindo centenas de milhões de vacinas. E, na verdade, acho que no Canadá é algo como – terá o suficiente para vacinar sua população por quatro ou cinco vezes, antes de você ver os países recebendo vacinas na África. Então, que tipo de responsabilidade um país como os Estados Unidos tem? Aqui neste país, as pessoas estão dizendo: “Não, não podemos obter vacinas. Por que devemos nos preocupar com o que está acontecendo na África? ” Explique por que a África está em uma situação tão crítica.

JOHN NKENGASONG: A África está em uma situação tão crítica porque fazemos parte do globo, e a África é um continente de 1,3 bilhão de pessoas. E novamente, vivemos – estamos vendo e testemunhando um vírus que está se espalhando muito rápido. O globo, como um todo, registrou mais de 100 milhões de casos de COVID-19 em apenas um ano. Então, isso é extraordinário. A última vez que vimos um vírus tão rápido e impactante foi em 1918, durante a pandemia de gripe espanhola. Portanto, é uma ameaça global.

Acredito que deve ficar muito claro que nenhuma parte do mundo estará segura até que todas as partes do mundo estejam seguras. Estamos nisso juntos. Ou superamos juntos ou sucumbiremos juntos. Não há meio termo. Então, é por isso que Estados Unidos, Canadá e outros países em desenvolvimento devem trabalhar de forma colaborativa e coordenada com o continente africano, para que comecemos a ter acesso às vacinas.

Os países que garantiram doses adicionais ou em excesso de vacinas podem fazer algo muito simples e certo, para que a história tenha uma boa lembrança deles: realocar essas vacinas para o COVAX Facility (consórcio para acesso global de imunizantes contra a Covid-19, aderido pela Organização Mundial da Saúde – OMS)) ou para o mecanismo que a União Africana implementou, para que assim possamos vacinar rapidamente o nosso povo. Eu uso a palavra “rapidamente” propositalmente. Se tivermos vacinas no final do ano, elas perderão o sentido para nós. Temos que ter vacinas agora, para que comecemos a vacinar nosso povo em grande escala e então paremos a disseminação das novas variantes que você indicou anteriormente.

AMY GOODMAN: Doutor, você poderia explicar a variante sul-africana? Claro, estamos ouvindo sobre isso nos Estados Unidos porque os estadunidenses estão se sentindo ameaçados. Quão rápido está se espalhando? O que isso significa?

JOHN NKENGASONG: O que isso significa é que estamos lidando com um vírus que se replica com muitos erros. Existem erros nos vírus. E a ocorrência de mutação em um vírus como o vírus COVID-19 não é anormal. Acho que é comum e deve ser esperado. Então, o que sabemos é que esse vírus está atualmente dominando a pandemia na África do Sul. E você viu como eles se espalham rapidamente nos últimos meses. E agora a África do Sul é responsável por cerca de 40% de todas as infecções no continente. Isso também significa que os sistemas de saúde na África do Sul ficarão sobrecarregados, e já estão atualmente sobrecarregados por este vírus que se espalha rapidamente.

O que não sabemos é se as pessoas infectadas com esse vírus estão morrendo mais. Acho que talvez, e apenas talvez, um aumento da taxa de letalidade, que agora está em torno de 2,6%, tanto a média global, que é de 2,2%, possa ser atribuída a essa variante. Nós simplesmente não sabemos. Portanto, o África CDC estabeleceu uma rede do que chamamos de Pathogen Genomic Institute em todo o continente para tentar gerar mais de 50 milhões de genomas nos próximos seis meses para compreender melhor a propagação desta variante pelo continente. E é um trabalho com o qual estamos muito comprometidos e construindo as parcerias certas para nos aprofundarmos na disseminação dessa nova variante.

AMY GOODMAN: Dr. Nkengasong, quero ler no jornal The Guardian. Eles dizem que “a Tanzânia rejeitou totalmente as vacinas, aumentando o temor de que o país do leste africano pudesse atuar como um reservatório para a doença e ameaçar o progresso em outros lugares”. O presidente John Magufuli disse na semana passada que a Tanzânia “viveu por mais de um ano sem o vírus porque nosso Deus é capaz e Satanás sempre falhará” e insistiu que a pandemia pode ser combatida com remédios naturais. O chefe da Organização Mundial da Saúde para a África na semana passada pediu à Tanzânia que compartilhe seus dados sobre as infecções”. Você pode falar sobre o significado do que a Tanzânia está fazendo?

JOHN NKENGASONG: O que a Tanzânia está fazendo é extremamente significativo. Nenhum país é uma ilha que consegue ficar isolada. E a Tanzânia é um forte membro da União Africana. E, novamente, a base da nossa união é a necessidade de cooperar, colaborar e compartilhar uns com os outros, para construir uma África unida. Esses foram os princípios fundadores que estabeleceram a União Africana. Um país como a Tanzânia, com líderes como Julius Nyerere que foram os pais fundadores daquele país, acreditava fortemente na unidade do nosso continente. E não há outro momento que eu possa lembrar que seja mais desafiador do que agora por causa da COVID-19.

Acredito que temos que expressar essa unidade de propósito e nos unir como um e lutar nessas batalhas. A COVID-19 não será eliminada na África se ainda tivermos bolsões de infecções por COVID na Tanzânia, um país com cerca de 60 milhões de habitantes. Isso simplesmente não vai acontecer. Por isso, apelamos à Tanzânia para que coopere com a Organização Mundial da Saúde, com o CDC da África e com a Comissão da União Africana, para que possamos trabalhar em conjunto para eliminar este vírus do nosso continente. Devemos fazer isso para sobreviver; caso contrário, viveremos com a COVID para sempre no continente, além do HIV, da tuberculose e da malária, que já são uma séria ameaça ao nosso desenvolvimento.

AMY GOODMAN: O primeiro carregamento de vacinas chegou à África do Sul no início desta semana. Quantas vacinas foram adquiridas em todo o continente? A Organização Mundial da Saúde disse na quinta-feira que a iniciativa COVAX visa começar a enviar quase 90 milhões de doses da vacina contra a COVID-19 para a África
em fevereiro. E você pode explicar o que é COVAX?

JOHN NKENGASONG: Então, COVAX é um mecanismo multilateral que foi estabelecido em Genebra e é cogerido pela Organização Mundial da Saúde, a Aliança Global de Vacinas e a Coalizão para Inovações de Preparação para Epidemias, abreviação – CEPI. Então, acho que é a nossa resposta ao que chamarei de anti-resposta ao protecionismo. Acredito que podemos reunir nossos recursos e, em seguida, adquirir vacinas e distribuí-las aos países que precisam. Acho que é uma iniciativa muito bem-vinda e continuamos a apoiá-la fortemente.

Ao mesmo tempo, o continente africano, a liderança do continente africano, como indiquei anteriormente, sob a liderança do Presidente Moussa Faki Mahamat e do presidente da África do Sul, na sua qualidade de presidente rotativo da União Africana, o Presidente Ramaphosa, reuniram o que chamamos de African Vaccine Alliance para
adquirir mais vacinas. E juntos adquirimos um total de cerca de 700 milhões de doses de vacinas. Mas deixe-me ser muito claro que todas essas doses de vacina não chegarão ao continente ao mesmo tempo. Essas vacinas serão sequenciadas durante o período dos próximos seis meses e também se espalharão até 2022.

Então, acho que essas vacinas, tanto do COVAX Facility quanto da União Africana, [inaudível] nos permitem atingir nossa meta de imunização de 60%, que estabelecemos como parte de nossa estratégia continental para alcançar imunidade populacional. Sem isso, não conseguiremos eliminar a COVID do continente. Então, estamos muito animados com esses números, mas temos que nos preparar. E estamos trabalhando com os Estados membros para estabelecer seus planos de vacinação, estabelecer seus centros de vacinação para que, assim que as vacinas chegarem, possamos implementar a vacinação de maneira fácil e rápida.

AMY GOODMAN: E a importância do retorno do Presidente Biden à Organização Mundial da Saúde? E, por fim, qual é a sua mensagem para o governo Biden no que diz respeito ao acesso às vacinas na África?

JOHN NKENGASONG: Fiquei muito animado em ouvir a mensagem do presidente Biden há alguns minutos quando você tocou no assunto. Acho que a liderança dos Estados Unidos sempre foi determinante e sempre jogou – mudou o jogo, uma vez que se posicionou de forma adequada, seja na área de eliminação da malária, eliminação do sarampo ou HIV/AIDS. O programa PEPFAR (maior fonte de financiamento para o combate ao HIV em todo o mundo) é um bom exemplo disso. Portanto, continuamos muito esperançosos e muito encorajados pela mensagem e pelos discursos que estamos ouvindo da Casa Branca a respeito da segurança sanitária global, a respeito da luta contra a COVID-19 no continente. O CDC da África está pronto para trabalhar com o governo dos EUA e o CDC dos EUA, a USAID (órgão do governo dos Estados Unidos encarregado de distribuir a maior parte da ajuda externa de caráter civil) e outras partes que têm trabalhado conosco durante todo esse processo. Portanto, estamos extremamente entusiasmados com o que ouvimos da Casa Branca.

AMY GOODMAN: E que conselho você daria aos Estados Unidos? Quero dizer, os Estados Unidos é o país mais rico do mundo e, ainda assim, têm a pior taxa de infecção e a pior taxa de mortalidade – o que, menos de 5% da população mundial, mas mais de um quinto das mortes e infecções mundiais quando se trata de COVID-19.

JOHN NKENGASONG: Acredito que é um novo dia para os Estados Unidos com a nova administração. E estamos muito encorajados pelo fato de que a resposta deles à atual pandemia nos Estados Unidos é agora realmente impulsionada pela ciência, por evidências e por dados. Então, estamos muito animados com isso. Acho que essa é a centralidade para combater qualquer pandemia, é confiar em boa ciência e em bons dados para garantir que haja confiança entre a comunidade e os especialistas em saúde pública. Acho que nós do CDC da África somos extremamente privilegiados por termos trabalhado lado a lado com a liderança política do nosso continente e não enfrentamos nenhum desafio e problemas com isso. Portanto, quando [inaudível] não se alinham, torna-se muito desafiador. Portanto, estamos muito animados com o fato de os Estados Unidos estarem se movendo nessa direção.

AMY GOODMAN: Dr. John Nkengasong, muito obrigado por estar conosco, diretor dos Centros Africanos para Controle e Prevenção de Doenças, falando conosco de Addis Ababa, Etiópia.


Traduzido do inglês para o português por Marcela APS Pedroso / Revisado por Luma Garcia Camargo