CONTO

 

 

Por Valéria Soares

 

 

O despertador, o telefone, todos juntos, ao mesmo tempo. Sobressalto. “O que aconteceu?” Pensa na mãe e atende o telefone com o coração aos pulos. “Acordei você?” – diz a voz que ela reconhece ser do Alfredo. “Já estava acordada”, responde com um certo mau-humor educado na voz. “Desculpe! É que estou saindo para caminhar… talvez você pudesse…quisesse. Pensei em convidá-la para caminhar comigo.” “Louco! Só pode ser louco! Nem me conhece e me liga a essa hora da manhã!” pensa. “Sinto muito, tenho que trabalhar fica para uma outra vez.” “Vou cobrar!” “Tá bom, Tchau.” Desliga o telefone com uma péssima impressão do tal do Alfredo. Arrependida de ter dado confiança de ter conversado com ele. “Deve ser um chato!” 

Arrumou-se para o trabalho com cuidado. Certamente provocaria elogios. No carro, MPB da melhor qualidade! Queria estar pronta para a reunião.

A reunião, o dia, os elogios… tudo como ela planejara. Sentia-se poderosa, inteligente!

No final da rua, havia uma pracinha que servia de retorno. Não precisava, mas foi até lá, contornou a praça numa velocidade um pouco acima do necessário: risco calculados, claro! mas agora, era também excelente motorista! Colocou o carro na garagem. Entrou em casa.

O relógio foi o primeiro a ser retirado. Os sapatos. “Odeio salto!” O cinto. “Que alívio!” jogou-se no sofá, ligou a tv. Ainda era cedo para assistir aos noticiários. A moça da faxina estivera na casa. Tudo cheirava a limpeza. Recolheu a pequena bagunça que fizera ao entrar. Subiu para tomar um banho. Sobre a cama suas roupas limpas e passadas. “Depois do banho, eu guardo. Olhou em volta fiscalizando a arrumação. Um bilhete. Havia um bilhete sobre a cômoda. Pegou-o, caminhou até a bolsa, então colocou os óculos e leu. “Dona Mônica ligou um tal de seu Alfredo. Deixou este número. Pediu que a senhora ligasse.”

Um frio no estômago. “Ligar?” Ficou nervosa. Será que ele a convidaria para sair? Correu para o banheiro. Pensaria melhor no chuveiro.  

Entrou no banheiro tentando manter sua rotina, mas um súbito desejo trouxe de volta lembranças sufocadas. “Mais essa agora! Há quanto tempo…” sorriu. Não ligou o chuveiro. De volta ao quarto, apanhou um cd: Djavan. Estava escondido sob um amontoado de outros CDs. A capa, a foto… Quanto tempo… Pegou o pequeno rádio guardado no armário. “Será que ainda funciona?” Lembrou-se da banheira.

Colocou tudo sobre a cama e resolveu encher a banheira. Água bem quente! Procurou no pequeno armário de madeira alguns sais. Sentiu medo de que lhe fizessem mal. Tanto tempo sem uso. Preparou o próprio banho como um ritual quase sagrado. Decidira curtir toda aquela saudade, reviver todo aquele desejo. Tudo pronto. Quase. Pegou o roupão cheirando a guardado. Ia levá-lo quando avistou o outro. Pegou-o também. No bolso, a marca de sua desastrosa tentativa de bordar: uma torta letra A. Quase podia ouvir os risos da noite em que mostrara o bordado para ele. Quase podia sentir os abraços, os beijos, os pedidos de desculpas dele diante do ar de decepção dela. Nunca mais pensara naqueles momentos, nunca mais tivera tanta felicidade! Sufocou toda e qualquer tentativa de seu coração voltar àqueles tempos. Estranhamente hoje, queria recordá-los. Estava cansada. Cansada de não sentir.

Apanhou o roupão com a letra A. “Quem sabe ainda não há nele o mesmo perfume?” Ligou o rádio, colocou o cd… mergulhou na banheira cheia de água quente e de saudades. 

Chorou. Copiosamente, chorou. Era a primeira vez que chorava. Não tinha ousado fazê-lo nem no momento da separação. Mergulhou novamente. Sentiu por não ter apanhado um vinho para comemorar aquele momento. 

No Cd, sua música favorita. Na banheira uma tempestade!

Fechou os olhos e se deixou levar. Queria expurgar tudo aquilo. Queria ser gente de novo.

Riu. Tudo isso, porque um desconhecido pediu que ela ligasse. O que havia naquela voz que a tinha feito desmoronar depois de tanto tempo? 

A música termina, a água esfria. Envolve-se no roupão. O perfume não está mais lá, porém todo o seu corpo o sente.

Volta a música no cd e dança com suas lembranças. “A gostava tanto dela…” repetia-lhe os versos como se os tivesse feito especialmente para ela. “Que felicidade era aquela?” “Será que realmente tudo aquilo existiu?”

O telefone tocou. Estremeceu. Era sua mãe. Não sabia se sentia alívio ou ficava decepcionada. A mãe perguntou o que acontecera, por que ela estava diferente? Desconversou. Não convenceu. Falaram por quase uma hora. Despediram-se. “Cuide-se, filha!” “Tá bom.”

Deitou-se. “Tudo aquilo acontecera realmente com ela?” Encolheu-se e dormiu. Não sonhou. Dormiu feito criança. Leve, despreocupada, feliz.

Acordou com o sol rasgando as cortinas. Tinha perdido a hora. Não se lembrara de colocar o relógio para despertar. Na verdade, nunca precisara dele, sempre acordara sozinha. 

Apesar do atraso, arrumou-se com cuidado. Prendeu os cabelos, colocou um perfume, maquiou-se, colocou um vestido! Telefonou avisando que se atrasaria. Pegou um cd de uma banda dos anos 80. No caminho para o trabalho, parou para tomar um capuccino. Combinava com o frio, com o vestido de lã importado, com o casaco, com as botas. Combinava com ela! Percebeu que havia passado tempo demais magoada. Queria mudar. Tinha uma bela história! Tinha por que sentir saudades! Tinha por que se sentir feliz! Se não tinha dado certo, paciência. Não guardaria mais mágoas.

No trabalho, todo mundo notou algo diferente nela. Não contou nada a ninguém. Sorriu para todos que perguntaram o que havia acontecido. 

O dia passou tranquilo. Na volta para casa comprou flores: margaridas!

Ligou. Do outro lado a voz do Alfredo respondeu. Disse quem era. Ele perguntou por que ela não ligara antes. Ela não respondeu. Ele a convidou para jantar e sugeriu um restaurante chinês. “Você também gosta de comida chinesa?” perguntou sem pensar. “Muito!” Ela achou melhor encontrá-lo no restaurante. “Às 9?” “Ok!” Estava feito. Não sabia bem o motivo, mas sabia exatamente o que vestir. Colocou a roupa sobre a cama, pôs a banheira para encher, pegou o cd.

(continua)