CRÔNICA

 

 

 

Por Marco Dacosta

 

 

“Aqui estava eu em Nova York, cidade da prosa e da fantasia, do automatismo capitalista, suas ruas um triunfo do cubismo, sua filosofia moral, a do dólar. Nova York me impressionou tremendamente porque, mais do que qualquer outra cidade do mundo, é a expressão mais completa de nossa era moderna”

Leon Trotsky, 1916

 

A ponte do Brooklyn permite uma ampla visão da parte central da cidade.  Às vezes caminho,  olho para trás e os prédios parecem aumentar. Alguns estão lá desde que as torres e cabos que sustentam meus pés foram construídos e as chaminés das fábricas pintavam o céu de cinza. Acredito que seja nesse lugar o maior ponto de conexão com o passado. É a minha máquina do tempo. 

Uma vez uma professora de história me disse que a pintura, ao contrário da fotografia, era a perfeita máquina do tempo. Ao deslizar levemente seu dedo pela tinta seca de uma tela você está tocando no mesmo material que o pintor tocou, muitas vezes no século passado. Tocar na ponte, pisar no chão de madeira, nos tijolos antigos é como me transportar para o passado.  Todos os artistas, escritores, ativistas, poetas e autores que eu admiro passaram por aqui. Não importa se eram russos, alemães, franceses – todos tiveram alguma escala nesta cidade e por isso passaram por aqui, símbolo e marco da metrópole nos dois últimos séculos do milênio. É um lugar de deixar a imaginação me levar até eles. 

Cada vez que venho,  me encontro por um tempo com algum deles. Fico imaginando o que pensavam do futuro, da humanidade ao ver os barcos que cruzam o vão central, sentido o vento forte que corta o rosto e beija os cabos de aço que suspendem as toneladas de tijolos e madeira. A brisa vem e desliza no meu rosto e por minutos estou ao lado deles. 

Ao meu lado parou um homem alto, de cavanhaque. Ele me acompanha com o olhar. Parece que veio de uma festa a fantasia, tem um terno cinza, sapatos negros, calças combinando e um chapéu na mão. 

Cidade de prosa e fantasia. Disse-me olhando para os arranha céus –   Ah me desculpe…Leon … muito prazer ! Turista?

Não.  Eu vivo aqui. 

Me afastei para vê-lo por inteiro, olhei para os lados. Quase me belisquei. Não poderia estar ali conversando com Leon Trotsky, o grande articulador da Revolução Bolchevique – A insurreição de Outubro na Rússia que mudaria o destino da humanidade.  Ou poderia?  Seria a Brooklyn Bridge um parque suspenso de almas que já viveram por aqui ? Me deixei levar pela fantasia. Temos sotaques semelhantes – já me disseram em Brighton Beach, Nova Odessa. O português soa como russo no inglês. Yiddish era predominante no East Side. Qual era o ano? 

 

  1. Antes da Revolução Trotsky parou nessa ponte e olhou para o infinito. Seu único trabalho era ser revolucionário e estava vivendo no Bronx, na época como hoje, periferia, lugar de pobres, negros e trabalhadores das fábricas da cidade.  Eram cinco milhões de almas. Milhares que  chegavam diariamente, em busca de uma nova vida.    Nova Iorque era um caldeirão étnico do novo mundo. Era o coração planetário da capital porque a Europa estava em convulsão e crise.  Atraídos pelas fábricas degradantes e desumana na Union Square, anarquistas se rebelaram contra os magnatas, incendiaram as ruas com discursos inflamados, bombas explodiram. Leon estava acompanhando tudo de perto, se espremendo em manifestações. Posso sentir o cheiro das explosões a querosene que empesteiam as passeatas.  O grito das mulheres, ainda oprimidas e sem voto. Os cânticos italianos da lavoura, as canções irlandesas de guerra e paz. O cheiro da pólvora após a explosão.  Corpos caindo, poças de sangue.  Vermelho como a bandeira que Leon carrega nas mãos.  

 

Trotsky está do meu lado, imaginando o futuro.  Pensativo. O que eu tenho a oferecer ao passado ?  

Eu respiro o passado.  Ah Leon. posso te chamar assim?  Camarada. Sou filho de ferroviário do terceiro mundo – um outro planeta fome e exclusão criados pelas chaminés que sujam o ar freneticamente. O Brasil, de onde venho é o paraíso e o caos. Posso te chamar assim? Não é falta – é excesso de respeito. 

León parece distante. O México foi sua última morada. Ele sabe que nós latinos somos movidos a paixões e comida apimentada. Fomos catequizados para a servidão. Como já cantou Caetano:  “Será que nunca faremos senão confirmar, a incompetência da América católica. Que sempre precisará de ridículos tiranos

Será, será, que será?”

Eu não paro de tentar contar a Leon que tudo parece que foi em vão. Que as revoluções fracassaram. Que o novo milênio chegou e as corporações substituíram o Estado. Somos hoje uma Mad Max governada por executivos jovens da Amazon. Sim, a empresa que tem nome de floresta dizimada. 

Calma. Olha como o ar está limpo, tudo azul. Me disse. Pelo menos vocês limparam o ar. Eu posso ver ao longe. É a Estátua da Liberdade?  Ela sobreviveu. 

Leon tem os olhos bem vividos, bochechas rosadas. Como era a vida naquela confusão de línguas e costumes ?  Modernidade, chamamos o encontro de tudo com todos, camadas que vão se acumulando. Uma revolução que se perde dentro da outra e por aí vai, como um espiral de tragédias e derrotas dos que nada possuem. 

Leon, na história,  voltou para a Rússia depois de alguns meses por aqui. Antes do hip hop, saiu do Bronx para liderar uma revolução. Espere. Você é mesmo Leon Trotsky? 

Eu ? Claro que não. Sou ator. Te convenci ? 

Leon passeava na ponte antes da peça teatral no Brooklyn. Parou ao meu lado para fumar.  Em segundos imaginei que fosse Trotsky e já imaginei que ficaríamos amigos.  Que eu o seguiria para a revolução, que chegaríamos ao poder, que seríamos expulsos do poder e que vagaríamos por uma rua da cidade do México.  E Nova Iorque seria para sempre a lembrança de onde a esperança da mudança do mundo começou. 

E gritaríamos ao mundo – como está na base da senhora liberdade: “Venham a mim as massas exaustas, pobres e confusas ansiando por respirar liberdade. Venham a mim os desabrigados”

Não temos medo da tempestade Leon. Nós somos a tempestade.