18 de dezembro, Dia internacional do migrante

 

Mérica Mérica Mérica,
Cosa sarà là sta America
Mérica Mérica Mérica
L’è un bel mazzolino di fior

(Mérica… O que será essa América. Mérica… é um lindo maço de flores – Cantiga popular)

 

Seis meses. Dizem que a partir da unificação da Itália em 1860, durante cem anos, quase vinte milhões de italianos deixaram sua terra para tentar a sorte além do oceano em países desconhecidos e exóticos onde, ao invés de um presente de miséria e fome, podia-se encontrar a esperança de trabalho e prosperidade. E assim foi. Chegavam no porto de Santos e subiam a serra de trem até a Hospedaria do Imigrante, onde ficavam em quarentena para depois serem despachados às fazendas de café para substituir a mão de obra escrava recém dispensada. Durou pouco.

A massa preferiu voltar a cidade de São Paulo e dar vida ao proletariado urbano, nas fábricas, nos cortiços, na nascente indústria nacional. Ou foram para o sul, onde o clima e a generosidade da terra permitiram o surgimento de pequenas comunidades de agricultores que trouxeram o cultivo e o culto do vinho e do pão. Muitos foram à Argentina ou ao Uruguai. Alguns escolheram a Venezuela. Outros tantos, os Estados Unidos. Levaram o anarquismo, as primeiras organizações sindicais, a consciência do direito dos trabalhadores, a família, a pizza e a máfia. Sofreram discriminações, muitos foram até mesmo processados e executados.

Imigrantes europeus no pátio central da Hospedaria dos Imigrantes, de São Paulo. Foto de domínio público.

Hoje, os descendentes daquela gente toda são oitenta milhões de pessoas. A Pátria mãe, a Terra Nostra, lá longe, desde sua unificação, se transformou em potência econômica, que, rica de uma cultura milenar, moldou seu povo através de privações mil, passando por duas guerras mundiais, o fascismo, a resistência e a guerra civil, seguidas por seu segundo renascimento artístico, por meio do cinema, da música, do esporte e da pujança industrial.

Seis meses. Nascido assim tão longe de não caber no mapa, respira areia e desconforto de um sol sem piedade, até chegar ao mar. Aí espera, dias, semanas inteiras, espera o fim que se aproxima de uma viagem sem fim, a esperança que não sabe o que esperar: a certeza da dúvida mortal de que a viagem pode não ter valido a pena. O mar na sua frente. O mesmo mar que os antigos chamavam de Nostrum, nosso, porque todas suas ondas, todas as correntezas haviam sido desvendadas.

Nostrum, nosso, porque o mundo assim era, um imenso mediterrâneo onde a Pax Romana e o Império da Lei valiam a construção do único mundo possível. Hoje, Mare Nostrum, significa meu, nunca teu, tampouco dele. Meu mar, mar meu, para ser defendido de qualquer passagem ou travessia, de quem se atreve a navegá-lo para aqui chegar, roubar meu emprego, violar minhas mulheres e espalhar doenças. Seis meses.

Oitenta quilômetros separam a Albânia da Puglia, a magnífica região do sul da Itália no calcanhar da bota. E aquele dia 8 de agosto de 1991 chegaram aos milhares. O navio atracou em Bari de repente, do nada. E de repente, do nada, a Itália descobriu que era um país rico, um país do qual ninguém queria mais fugir e emigrar exportando sindicalismo, pizza e máfia.

Resgate de imigrantes em Malta, em 2013. Foto de domínio público

Milhares de corpos tentando desembarcar entre policiais e soldados que não conseguiam conter a multidão. Muitos foram levados ao estádio para uma improvável tentativa de triagem. Quem era essa gente toda, de onde vinha, o que queria? Nem isso foi possível saber. A fome, o calor, a falta de higiene, a vontade de fugir para qualquer lugar, o tumulto geral, transformou o estádio em um novo campo de concentração, onde as normas da lei não mais valiam, onde o direito fora abolido pelas circunstâncias e pela incapacidade das autoridades de fazer frente à situação.

Seis meses.

Desde então, passaram-se trinta anos. Agora não é mais somente o estádio de Bari. Agora é todo o sul da Itália a ter se transformado em um enorme campo de prófugos, onde as pessoas são reunidas na eterna espera de uma permissão, um visto, alguma coisa que as deixe sair dali, para ficar, morar, viver e trabalhar do outro lado do arame farpado.

Aquilo que foi um gesto desesperado de vinte mil albaneses, hoje virou a maior indústria internacional do tráfico humano. Depois de ter atravessado o Saara, as pessoas são recolhidas na Líbia em enormes prisões sob o controle dos chefes milicianos que dominam o território desde a queda do Kadafi. Mas o único meio de sair e continuar a viagem rumo às praias italianas, porta de entrada para um mundo que não os quer, o único jeito possível é pagando.

Recentemente o governo italiano fez um acordo com a guarda costeira líbica: patrulhar e impedir o acesso dos barcos clandestinos cheios de migrantes em troca de muito dinheiro. A comandar a guarda costeira, são os mesmos traficantes de homens que organizam a viagem no deserto e que, para permitir a viagem marítima, pretendem um ulterior pagamento, exigem serem pagos por quem não possui mais nada.

Enquanto isso os prófugos são obrigados a pedir o resgate para suas famílias, lá no país de origem, somente assim poderão seguir viagem. Além de receber dos migrantes, além de chantagear suas famílias, agora os traficantes de homens são pagos pela Itália e, de reflexo, pela União Europeia, cuja atitude, desde a época do navio albanês, sempre foi aquela de ignorar a situação como se fosse um problema exclusivo da Itália.

Seis meses. Em trinta anos, milhões de pessoas vindas das profundezas da África e do Oriente Médio em guerra, tentaram atravessar o Mar Mediterrâneo. Os traficantes de homens maximizaram seu lucro aumentando o número de viagens em detrimento da qualidade das embarcações. Não mais navios, mas botes infláveis, arrastados até as águas internacionais e depois abandonados à deriva.

Quando nas praias da Sicília os cadáveres começaram a aparecer a centenas, perante a falta de intervenção das autoridades, a sociedade civil formou ONGs de ajuda que, desafiando a própria lei italiana, saem ao mar para recolher os náufragos. Hoje, muitos desses navios de socorro estão retidos nos portos, e sua tripulação está sendo processada. O delito é aquele de salvar vidas sem “respeitar as devidas normas de segurança”, em navios onde “a quantidade de banheiros a bordo é proporcionalmente inferior ao número dos passageiros recolhidos” (como se fosse possível saber de antemão quantos náufragos serão encontrados no mar), onde foi constatado que “na embarcação havia mais coletes salva-vidas do que a capacidade de transporte de passageiros”.

Hoje somente o navio da Open Arms, – a Ong fundada após a tragédia humanitária de Bodrum, na Turquia, quando os botes de migrantes afundaram matando dezenas de pessoas, entre elas um menino de camiseta vermelha, cuja imagem, deitado sem vida na beira do mar, deu a volta ao mundo – está presente patrulhando as rotas no Mediterrâneo. Impedir a ação dos navios de socorro, significa eliminar e silenciar as testemunhas de um dos maiores crimes em curso naquele espaço de mar entre o norte da África e o sul da Itália, um dos maiores crimes contra a humanidade do nosso tempo.

Seis meses.

É como se a voz tivesse ocupado todos os espaços possíveis, como se o grito saísse das mãos, dos braços, das pernas, das contorções sobre o chão do barco que a salvou da água. O bote inflável, acabara de rachar. A cair no mar foram mais de cem. Perdi meu bebê, perdi meu bebê. O salvamento continua, as pessoas resgatadas estão vivas no navio. Na enfermaria, a mãe desesperada abraça o seu pequeno que os médicos tentam reanimar. Parece melhorar, ligado a um respirador mecânico, reencontra o calor da mãe que lhe fala ao pé do ouvido sua felicidade de poder abraçá-lo novamente.

De repente as condições do bebê se fazem críticas e seu fatigado coração, depois de ter respirado areia do Saara, de ter suportado os maus tratos dos traficantes de homens, depois de ter engolido a água salgada do mar, seu pequeno coração para de bater. Youssef, seis meses de vida, morre náufrago. Morre no Mare Nostrum, a maior fronteira da humanidade, onde o cinismo do Norte bloqueia a esperança do Sul do mundo. A fronteira que milhões de migrantes do nosso tempo pensam ser a porta da nova América, onde encontrar trabalho e prosperidade; aquela mesma Mérica sonhada pelos primeiros migrantes vindos do sul da Itália, dispostos a deixar tudo, arriscar a vida para chegar lá.

No cemitério dos migrantes da ilha de Lampedusa descansam dezenas e dezenas de pessoas sem nome encontradas, ao longo desses últimos anos, boiando no mar, caídas dos botes ou jogadas pelos traficantes de homens. Descanse em paz, pequeno migrante, descanse em paz.