Há alguns meses, conversando com uma amiga sobre a pandemia e as muitas consequências que poderiam advir desse contexto, ela me dizia que, certamente, aprenderíamos muitas lições para fazer deste mundo um lugar melhor para todos e todas. Essa conversa tivemos no mês de julho, se não me engano. Logo em seguida, quando as primeiras notícias de que vacinas estavam sendo desenvolvidas, o discurso era igualmente alentador: apregoava-se que, com uma vacina pronta para ser aplicada, isso se daria de maneira equitativa, sem privilegiar os Estados mais ricos do Globo. Mas o recrudecimento da pandemia já provou que a história é bem outra. No final das contas, prevalece a “lei do mais forte”.

A história da humanidade tem monstrado que a “lei do mais forte” tem sido empregada há muito tempo, sem cessar. Basta olharmos, por exmeplo, os continentes africano e asiático – com relação ao primeiro, principalmente a área subsaariana; e com relação ao segundo o sudeste – e veremos como a devastação levada a cabo pelas forças ditas civilizatórias (não apenas do passado mas também do presente) praticamente condenaram aqueles povos à pobreza, ainda que vivendo em territórios ricos. Quando direcionamos nossos olhares para a América Latina e para o Caribe, a percepção não é diferente.

Séculos e mais séculos de exploração, de destruição da autoestima, de criação de mecanismos de subjulgo, como as colonizações e as ditaduras “plantadas” têm resultado em devastação, espoliação, pobreza e miséria. Os resultados desse tipo de incursão têm-se revelado de distintas formas, como migração em massa, por exemplo, hoje um “grande problema” para as populações ditas civilizadas e desenvolvidas, desesperadas com o efeito bumerangue do seu próprio modus viviendi.

Falsa moral

O neoliberalismo do século 21 tem intensificado essa relação desigual e cruel entre ricos e pobres. E nesse contexto atual, em que uma pandemia se alastra com toda força, matando milhões de pessoas em todo o mundo, as consequências mais desastrosas recaem para as populações dos países cujos índices de pobreza são incontestáveis. Desde o mês de outubro deste ano que a Organização das Nações Unidas (ONU) adverte acerca dessa

assimetria. Após monitoramento do comércio de insumos para o combate à Covid-19, a ONU revelou que um cidadão de país rico chega a ter 100 vezes mais acesso a remédios, equipamentos e estrutura médicao-hospitalar do alguém que que vive em um país pobre.

Mas a situação não para por aí. Ainda conforme a ONU, os impactos em consequência das condições precárias de moradia também foram aprofundados: 1 bilhão de moradores de favelas no mundo enfrentam riscos mais agudos, especialmente na África subsaariana e no leste e sudeste da Ásia, que representam 23% e 36% da população urbana global que vive em favelas. Conforme é possível constatar no levantamento das Nações Unidas, em um contexto no qual o acesso universal à moradia adequada é primordial, cerca de 1,8 bilhão de pessoas vivem em espaços superlotados ou inadequados, com riscos agudos de exposição à Covid-19.

Esses dados demonstram que, nesse mundo desigual, a pandemia só fez agudizar os problemas já existentes. E, infelizmente, aquele discurso de igualdade, respeito e solidariedade que ouvimos de vários chefes de Estado dos chamados países desenvolvidos, afirmando que a vacina deveria ser distribuída equitativamente, não passou de uma falsa moral judaico-cristã. Não fosse assim, a itália, por exemplo, não teria comprado vacina suficiente para o dobro de sua população, quando muitos países não poderão comprar nem sequer uma dose.

O secretário Geral da ONU António Guterres disse nos últimos dias estar preocupado com o fracasso do programa Covax Facility, lançado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) com o intuito de garantir a todos o acesso às vacinas. De acordo com ele são necessários pelo menos US$ 5 bilhões até o final de janeiro para que sejam distribuídas dois bilhões de doses até o final do ano que vem, a pelo menos 20% da população de 91 países pobres, sobretudo de África, Ásia e América Latina.

Como vemos, a “lei do mais forte” continua. E não poderia ser diferente no capitalismo, um sistema que prioriza o capital. Inclusive acima da vida. Sem mudar o sistema, não há como gerar a solidariedade da qual necessitamos. Ao conjecturar que, devido à pandemia, aprenderíamos lições valiosos para tornar o mundo melhor, a minha amiga não levou isso em consideração