OLHARES

 

“A cobra que não consegue livrar-se de sua casca morre. O mesmo acontece com os espíritos que são impedidos de mudar as suas opiniões; eles deixam de ser espírito.”
Nietzsche

Naja: cobra peçonhenta oriunda de países não europeus ou do novo mundo. Durante o isolamento social, um “estudante” foi picado por uma espécie de Naja e, ao ser socorrido, revelou-se que este jovem era “suspeito” de participar de uma rede de tráfico de animais, envolvendo pessoas de bem que nem com aspas ousarei mencionar aqui.

O veneno da Naja não foi suficiente para ser fatal ao jovem estudante suspeito de mantê-la em cativeiro. O jovem de bem passa bem. A Naja foi morar em São Paulo e até o final desse texto se discute o seu destino. Talvez o erro desta cobra, que foi um dos acontecimentos da primeira fase da pandemia do Covid-19, foi não seguir as regras das redes sociais de quem busca ser um acontecimento na contemporaneidade: morder, mas depois não assoprar.

O assopro como alívio da dor, ao menos para mim, antes mesmo de ser estudante, surgiu em lembrança com minha tia Gildete que, com sua doçura, me convencia de que a ferida, invariavelmente no joelho ou cotovelo — pois, se é para doer, tem que ser onde articula e cria cascão –, não estava doendo e que o remédio faria bem (uma observação: a dor era minha após um tombo fud…do e o remédio era o temido Mertiolate). Quando a pazinha de plástico do medicamento batia na ferida e os escândalos de dor vinham à tona, argumentação de minha tia era derrubada. Mas, apesar da doce mentira para aliviar o sofrimento da criança, acompanhada de uma assoprada fria, trabalho psicológico para fazer crer num heroísmo cuidadoso da pessoa que cuida, ainda amo minha tia. Porém não curto a parada de, como canta Tati Quebra-Barraco: “tá ardendo assopra”.

A mordida da cobra, no ambiente das redes sociais contemporâneas, como já relatei em outro texto, baseia-se em existir enquanto visível. Morder e assoprar é regra, quando a competência e a empatia não são naturais para conseguir seguidores.

E o preconceito é a fórmula do sucesso.

No país sede da Améfrica Ladina, como chamou Lélia Gonzalez, as lutas dos povos pretos e pindorâmicos e as brechas abertas em sua interação social trouxeram poucas, porém fundamentais, conquistas nestes 520 anos de invasão de povos de onde a Naja não veio. Porém, todas as leis para reduzir a desigualdade e punir o preconceito estão distantes de punições relevantes. Elas caem em desuso com a mesma facilidade que uma lei da vadiagem é mantida em prática. O estudante permanece estudante perante os olhos da sociedade e aplicação da lei se a cor estiver de acordo com a da pessoa que se pensou ao criar o rótulo “estudante”.

Nas redes sociais, quando alguma celebridade precisa aumentar o número de seguidores ou dinamizar seu feed em um momento de baixa, ela pode se beneficiar de sua boçalidade que, quando casada com a cor do rotulado estudante, é sinônimo de ingenuidade para fazer comentários preconceituosos a qualquer grupo não padrão. Após repercussão negativa dentre o público mais ativista da causa atingida pela “gafe” da celebridade, este pode ser orientado por profissionais para se posicionar de maneira adequada para apaziguar os ânimos dos “revoltosos” e, como uma doce assoprada fria na ferida da vítima da agressão, dizer “viu, não doeu… não foi nada”.

Pois bem… quando a tática “morde e assopra” vira um dispositivo para atingir os trend topics e fazer com que pessoas com perfil estudante possam se mostrar generosos em assumir o erro e mostrar que “todos podem melhorar”, vemos que há uma qualificação de quem morde e se esta pessoa poderá assoprar a ferida depois. Um fato é que a ferida dói para todos, mesmo para quem finge que não dói. Mas a culpa de provocar a dor só é punida para alguns. Coitada da Naja por não ser oriunda da Europa, não é verdade? E se a Naja ainda teve o benefício de um perdão por ter atingido um criminoso? Quero dizer, um estudante de família de bem da região metropolitana da capital do país? Nem todos são reconhecidos como “estudante” ou dignos de se comparar em tratamento por parte da justiça à Naja?

É normal que dentro do racismo, e até das fobias que atingem outros grupos, a desumanização do outro os faz serem comparados a animais. Esse tipo de “brincadeira”, ou de “uso equivocado”, “mal-entendido”, e tantas desculpas clichês que tornariam o uso de aspas um exagero nesta frase, normalmente faz com que essas pessoas fiquem abaixo dos animais, quando são vítimas, podendo ser agredidas moral ou fisicamente e resolver com um remedinho na ferida e um assopro para não doer. Mas, quanto mais pessoas são feridas e quanto mais constantes são as agressões que provocam essas feridas, não há assopro que alivie ou remédio que cicatrize.

Feridas que acabam com a carreira de quem expõe a agressão. Feridas que fazem com que quem fingia não sentir a dor tenha que a sentir para ser entendido como vítima. Ferida que não dói em quem fere, a não ser que isso possa macular a sua imagem. Sempre a imagem de quem fere é que não deve ser maculada. Até porque, nas redes, as empresas que anunciam, atualmente em banners que se adaptam aonde houver frequência de acesso de acordo com os interesses comuns, calculados matematicamente para dar match com o consumidor alvo, são as que determinam quem merece perdão por morder venenosamente com direito a assoprar sem chupar o veneno. E as lutas para que nós, grupos agredidos, fazermos parte dos perdoados, é persistente, com enorme resistência dos agressores, pois se uma pessoa como eu conquistar uma única vaga que não foi pensada para mim, meu maior desejo será ter o tratamento da Naja por “beliscar” essa oportunidade.

O que alguns com receio chamam de “cultura do cancelamento”, dependendo de onde vem o repúdio para “cancelar” um agressor, pode provocar diante da “opinião pública” (leia-se “opinião de estudantes”, ou “ajuda dos universitários” como diria o midas da mídia) um movimento de defesa, um cerco de proteção, que só quem é privilegiado tem. Nem todos podem errar. Nem todos podem beliscar, picar, morder, sem querer. Ou “sem querer querendo” como diria o Chaves.

O termo “cultura do cancelamento” não foi criado por uma vítima, até porque a paciência da coletividade de quem sente a dor pela pessoa agredida diz muito do alcance da agressão. E se o troco dói em quem agride, a ponto deste fazer “mimimi”, termo que também não foi criado por uma vítima, é sinal de que, mesmo em algo que está longe de ser cultura, o cancelamento dói em quem fere mais de um e que quando é ferido não haverá assopro que alivie.

Lélia González alertava o povo preto, para dar nomes e sobrenomes às suas coisas, antes que um branco colocasse um apelido quem bem lhe convenha. Não nomeamos os rótulos que nos punem e não estamos nos postos de decisão para julgar quem já nos puniu sem nos conhecer, pela “brincadeira” ou pelo direito de defesa. Sabe-se que a perda de seguidores para alguns, ainda mais para privilegiados que persistem no isolamento social porque podem ficar em seus lares, é uma ferida incurável e que não cicatriza. Em um país onde não se encontra soro para picadas de cobras, e onde a visibilidade também se torna possível para os que são agredidos, inclusive com o assopro semelhante ao de minha tia vindo da coletividade de pares que optam pelo acolhimento e exaltação dos valores das vítimas de agressão, há uma possibilidade de se qualificar as redes sociais, que tem sido o playground da sociedade com acesso.

Em breve não será preciso cancelar boçais, numa ação em grupo, para limpar a rede que frequentamos. As redes são retratos da sociedade que a frequentam, com todas as contradições e “universos paralelos”, codificadas para seguir o fluxo que os próprios frequentadores determinarem. Se nossa vida se transferiu com o isolamento muito mais para essa rede, cabe qualificá-la pelos afetos, ou deixar os desafetos sozinhos lá e criar outras redes. A Naja é só uma cobra que nem sabe por que se meteu nessa história. E quem a trouxe não tem culpa, tanto que foi vítima de um animal perigoso que estava há tempos na casa dele. Imigrante forçada. Os animais têm um tratamento digno quando agressores. Não são abatidos, se escolhe onde acolhê-los. Por vezes, se monta uma operação para devolvê-los ao “habitat” em segurança. A Naja é melhor que você, como diria o meme.

Morder e assoprar, sem punição ou cancelamento, é para quem “estuda” ou é um animal que pode matar quando acuado.