MÚSICA

 

 

História da Música Italiana em dez capítulos, entre delírios e falsidades. Cap. 4

Admito que os impulsos patrióticos, principalmente no chuveiro – uma situação de total vulnerabilidade em que o piso molhado, na minha idade, por si só, é mais perigoso de qualquer sabonete caído – são ridículos, não seriam impulsos patrióticos se não fossem ridículos. Lembremos, senhoras e senhores, a desvergonhada nudez do momento, as molezas inexoráveis de panças e afins, o orgulhoso cansaço por cânticos gritos e dancinhas, o medo de retaliação de inquilinos, coinquilinos e afins pelo distúrbio provocado. Lembremos, então, disso tudo, e teremos um quadro atual da situação da chuveirada em que me encontro. Está na hora de me acalmar. Quero cantar. Quem sabe, eu faça agora e não espere acontecer nada de mal, nem queda eventual, nem briga conjugal por causa dos meus molestos barulhos. Molestos… assim julgados por ouvidos assassinos, seja claro! Então deixemos a água escorrer e cantemos, senhoras e senhores, cantemos, para não escorregar, cair, para não provocar ira e raiva alheia, cantemos a obra prima do Lucio Dalla, baixinho e peludo, compositor, cantor e instrumentista de rara virtuosidade. Lembro, em garoto, me esconder com os amigos, na entrada do prédio onde ele morava, para vê-lo passar… conduzia um programa de desenhos, cantava a abertura com voz raivosa de palhaço do mal, entre Batmans e Superomens em preto e branco.

Mas cantar essa música que acabamos de ouvir não me passa pela cabeça, as convulsões recomeçariam de imediato. Quero a outra, aquela que Lucio Dalla apresentara no Festival de Sanremo e que se tornou famosa, popular, pela melodia simples e pela letra. A História de uma garota que cede aos encantos de um marinheiro de passagem, que parlava un’altra língua però sapeva amare, falava outra língua, porém sabia amar. E com o filho, fruto do pecado, a garota brincava de ser Nossa Senhora ninando o Salvador. Quem conta a história pela voz do Lucio Dalla é o aquele menino filho do amor fugaz, que hoje, nos botecos do porto, entre garrafas de vinho, cigarro, e o carteado brabo, os ladrões e as prostitutas continuam a chamá-lo de Bambino Jesus.

Gostaram? Não? Vaiticatá. Então, escute aqui, ó

Agora? Ui, o Chico, Ui, o Chico. Sabe de nada, inocente. Lucio Dalla é um supermúsico, toca tudo, canta como um animal enjaulado, é peludo como um sátiro e coloca seu Chicocaetano no chinelo. Que ver?

Por isso uma força me leva a cantar, por isso essa força estranha e essa minha voz tamanha, porque Lucio Dalla existe, e a quem faz a hora, como eu, nada pode acontecer: não tenha medo, meu amor… i russi… gli americani… no lacrime, non fermarti fino a domani, Os russos… os americanos… não chores e não pare, continue até amanhã, e o filho que nascerá será menina, linda como uma estrela, será uma miniatura de você. Assim diz uma das canções mais lindas que eu já ouvi. Lucio Dalla escreveu. Lucio Dalla cantou. E eu também: Futura.

Nas suas músicas, Lucio Dalla canta o mundo como deveria ser, o mundo que poderíamos ter construído e, se quisermos, ainda dá tempo de fazê-lo. Por isso o sucesso e a unanimidade entre o público de todas as gerações. Desde sua morte prematura, sua cidade, dedica a ele meia hora do seu tempo: todo dia, às cinco da tarde, em frente à casa onde morava os alto-falantes tocam uma canção dele. E o pessoal interrompe os afazeres, ouve, lembra o poeta e chora.

Os misteriosos caminhos da música me levam a lembrar de quando o Movimento, sempre em busca de um inimigo de classe, contestava Francesco De Gregori. Tá bom que o apelido dele, pela altivez, pelo porte, era “O Príncipe”, mas, cá entre nós, jogar coquetel molotov no palco onde ia se apresentar, foi demais. A desculpa era a mesma de sempre: o preço alto do ingresso. Como era possível para um jovem do Movimento pagar tanto para ouvir um musiquinho, cuja letra das canções era incompreensível, e ainda por cima, que se fazia chamar de “Príncipe”. E dá-lhe bomba! Coitado dele, não merecia. Mas não se deixou levar pelo desconforto. Carlos Santana e seu grupo lendário tinham gozado do mesmo tratamento. E como eles, muitos outros. Naquela época era assim. Como diria Kierkegaard, Out-out, e Edir Macedo, Ou dá ou desce. Mas Francesco De Gregori não deu e nem desceu. Muito pelo contrário, subiu e voou tão alto que conquistou a eternidade da grande música italiana de todos os tempos escrevendo sua página mais linda. Uma canção que canção não é, uma anti-música inspirada nos sermões de Bob Dylan, onde o que conta é o texto, quase falado seguindo uma linha melódica de uma simplicidade atroz e desarmante. Fala de uma enorme mulher de circo, La Donna Cannone, apaixonada pelo trapezista com o qual sonha, um dia, voar longe, per le mani, amore, con le mani io ti prenderò, voleremo in cielo in carne e ossa e non torneremo più, pelas mãos, meu amor, com as mãos te pegarei, e voaremos no céu em carne e osso e nunca mais voltaremos. E no final o sonho se realiza, mas sem o amado trapezista, a Donna Cannone começa a levitar e voar, voar cada vez mais longe, o respeitável público boquiaberto assiste ao evento extraordinário para depois voltar à sua medíocre normalidade.

Dizem que se a gente levantar os olhos nas noites de lua, uma estrela aponta a direção daquele “enorme mistério” que fez o povo chorar, até mesmo os que jogavam as bombas no palco de Francesco De Gregori, il Principe.

Tranquilos, é impossível gritar no chuveiro essas melodias, simples demais, lentas demais, melodias faladas, silêncios e pausas, tristezas, melancolia, saudades, lembranças, lágrimas.

São pequenas obras primas que passam pelo tempo como se o tempo nunca tivesse passado, como se eu ainda tivesse quatorze anos, sonhando a Califórnia, ligasse o rádio e escutasse isso…

Um lindo dia, os caminhos de Lucio e Francesco se encontraram. E o mundo se viu questionado por perguntas metafisicas, tipo assim: cosa sarà che fa morire a vent’anni anche se vivi fino a cento? O que será que te faz morrer aos vinte anos mesmo vivendo até cem? Se uma pergunta dessa é capaz de interromper qualquer chuveirada, escuta outra: O que será que te leva a procurar o justo onde justiça não há?…

Aconteceu há mais de quarenta anos, Lucio Dalla e Francesco De Gregori perguntaram, ninguém ainda deu a resposta. Nem eu, que agora estou chorando nos meus pensamentos, de como eu era ontem e até por mim. Acho que entrou shampoo nos meus olhos.


Acesse nesse link outros capítulos já publicados