Por Mariana Branco*

 

Eram 9h da manhã. Patrick Akon estava tomando banho quando percebeu que não sentia o cheiro do sabonete. Era abril e os casos e mortes por Covid-19 subiam a cada dia no Brasil, onde o haitiano vive com a família desde 2012. Preocupado, Akon foi tomar café da manhã e começou a provar tudo que havia na mesa. Não sentiu o gosto das frutas. O café parecia água. Ele então teve a certeza de que estava infectado pelo novo coronavírus. Tomou a decisão de se isolar dentro de casa.

Separou um colchão, copo, prato e talheres e se fechou em um quarto, para proteger a esposa e o filho pequeno. Passou dois dias sozinho, mas não se sentia melhor. Estava fraco e tinha dificuldades para respirar. Ouviu a esposa ao telefone pedindo a ajuda do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu). Mas o Samu estava sobrecarregado e não podia mandar uma ambulância. A esposa de Akon, então, ligou para a irmã, que também mora no Brasil e tem carro. Uma das últimas coisas de que ele se lembra é de ouvir a conversa entre as duas.

“Eu acordei no hospital. Fiquei nervoso. Gritei, mas não conseguia falar. Eu acho que eu estava muito longe, ‘cruzado’ com a morte. Quando olhei, nos dois cantos, estavam pessoas entubadas”, conta o haitiano, formado em jornalismo e cinema e que atua como produtor de vídeos e cineasta em sua própria empresa no Brasil. Akon usou a rede pública de saúde porque, cerca de um ano antes, tinha parado de pagar o próprio plano de saúde para conseguir manter o da esposa grávida.

Imigrantes e refugiados têm o mesmo direito que os brasileiros a acessar os serviços de saúde pública, reunidos sob o Sistema Único de Saúde (SUS). O acesso é assegurado pela Constituição Federal, que prevê o direito universal à saúde, e pela Lei n° 13.445/2017, a nova Lei de Imigração.

Segundo a mesma legislação, conforme regulamentada pela Portaria Interministerial n° 10/2018, os haitianos, como Patrick Akon, têm direito a tratamento prioritário na concessão de visto e autorização de residência no Brasil para fins humanitários. O Brasil permite residência temporária por dois anos, que pode depois ser convertida em residência por prazo indeterminado.

Se os haitianos têm direito a utilizar o SUS e são bem-vindos a se tornarem moradores do Brasil na letra da lei, na prática, enfrentam muitas barreiras e sofrimento ao chegar ao país, por um motivo evidente para quem conhece um pouco da dinâmica social brasileira: o Haiti é uma República Negra. E, no Brasil, onde 7,6% da população se autodeclara negra, o racismo é uma chaga aberta.

Patrick Akon foi confrontado com essa realidade assim que colocou os pés no país. “Não sabia o que era racismo. Aquilo que estou vivendo no Brasil agora foi resolvido no meu país há 300 anos”, comenta. Quando se viu sozinho no hospital em meio à pandemia do novo coronavírus, a situação não foi diferente. Akon conheceu médicos que, em suas próprias palavras, eram “da hora” (ele aprendeu a gíria brasileira para designar uma pessoa bacana). Mas nem todo mundo o tratava bem.

“Eu senti que eu era diferente e que alguns médicos tinham medo. Algumas pessoas não estavam querendo mexer em mim. Eu acho essa questão do racismo muito forte no Brasil. Se você é negro, você é atendido como um animal. No Brasil, é visto como algo muito natural. Mas, quando eu cheguei, eu achei esquisito o racismo em um país que tem tanta cultura, tanta diversidade”, diz.

Ele conta pelo menos duas experiências que o incomodaram durante o período de internação. Afirma que, quando a equipe colheu seu sangue para fazer exames, recebeu muitas picadas doloridas. “Nunca tinha sido picado assim”, comenta. O outro episódio foi durante o exame para detectar o comprometimento do pulmão. “Quando fiz exame de pulmão o cara me tratou muito mal, não queria estar perto, ficava falando de longe. As pessoas que estavam antes, ele estava ficando ao lado”, conta. A percepção de um tratamento cruel relatada por Akon é documentada em pesquisas.

Em 2017, Maria do Carmo Leal, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), analisou com uma equipe o recorte de raça e cor dos dados de uma pesquisa nacional sobre partos e nascimentos, a “Nascer no Brasil”, realizada com prontuários médicos de 23.894 mulheres coletados entre 2011 e 2012. Os resultados mostraram que, apesar de sofrerem menos episiotomias (corte na região do períneo para facilitar a passagem do bebê) em comparação às brancas, mulheres negras tinham chances 50% menores de receber anestesia durante o procedimento.

Patrick Akon conta que, antes de contrair a Covid-19, já tinha vivido experiências ruins no sistema de saúde brasileiro. “Uma vez eu caí e fui ao hospital e fui tratado muito mal. As pessoas sem falar bom dia, sem nem perguntar o que você tem. Eu viajei para muitos países para fazer intercâmbio, para visitar amigos, e nunca fui tratado assim”, afirma.

O racismo também está presente nos supermercados, onde Akon costuma vivenciar algo bastante comum no Brasil: ser seguido por seguranças assim que passa pela porta. “Muitas vezes eu fui ao supermercado e as pessoas começaram a me seguir. E, na maioria das vezes, quem está te seguindo também é negro”, surpreende-se. É uma face realmente cruel da discriminação: quem ocupa postos de trabalho como o de segurança de supermercado, que exige menos qualificação, são os moradores das periferias. Essa população, em sua maioria, é formada por pessoas negras.

Após cerca de uma semana internado, Akon voltou para casa. Ganhou uma nova chance, sorte que muitas vítimas da Covid-19 não tiveram. Sente-se grato. Mas considera o Brasil um lugar cada vez mais hostil para se viver. Segundo ele, a situação piorou desde a eleição de Jair Bolsonaro. “Com os nazistas (como ele se refere aos apoiadores do novo governo), o racismo está assumindo na cara dura”, diz. Ele admite que pensa em se mudar com a família, mas ainda não se decidiu. “Eu estava pensando em montar minha empresa em outro lugar. A gente pensou em ir para Dublin”.


* Jornalista formada pela Universidade de Brasília (UnB), especializada em Tradução. Trabalhou como repórter no Correio Braziliense e fez parte da equipe da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) até 2018. Atualmente, atua como tradutora e jornalista freelancer, sempre em busca de histórias que mereçam ser contadas.