Embora manter as pessoas focadas num processo eleitoral forte e robusto seja uma necessidade, também precisamos de nos preparar para um golpe de Estado.

 

Por Daniel Hunter

Temos um presidente que disse abertamente que poderá não respeitar resultado da nossa eleição. Temos de estar prontos caso ele reivindique a vitória antes dos votos serem contados, tentar impedir a contagem ou se recusar a aceitar uma derrota.

Sinto-me confiante de que, algum dia, isso vai acontecer. Uma pesquisa mostrou que mais de 75% dos Democratas pensam que isso é possível — e chocantes 30% dos republicanos também!

E há dias que tenho certeza de que essa é uma conversa dura de um presidente que não é bom em planejar com antecedência. Ainda assim, ele é bom no tipo de desorientação que pode nos manter complacentes e reacionários – o que poderia nos levar a parar de fazer o importante trabalho de base para obter votos, de proteger os correios e de lutar contra a repressão eleitoral.

O que estou   propondo não é pedir que paremos os que estamos fazendo agora. Em vez disso, faço parte de  uma iniciativa chamada “Choose Democracy” (Escolha a Democracia), que está preparando as pessoas para a possibilidade de um golpe, mantendo as pessoas focadas em um processo eleitoral forte e dominante. Afinal, a melhor maneira de impedir um golpe é não ter um.

Estas diretrizes são retiradas do amplo conjunto de experiências e evidências dos muitos países que têm experimentado um golpe desde a Segunda Guerra Mundial. Você pode ler alguns estudos de caso mais completos em “Choose Democracy” ou em um manual mais longo com base em evidências para este momento  em “Hold the Line: A Guide to Defending Democracy.” (na tradução literal, “Mantenha a Linha: Um guia para defender a democracia”)

1. Não espere resultados na noite da eleição.

A campanha eleitoral de 2020 está caminhando para ser muito diferente das anteriores. Há indícios de que os votos pelo correio podem não ser computados em dias ou até semanas após o dia da votação. Como se espera que os democratas se utilizem dessa modalidade de votação a distância com mais frequência do que os republicanos, espera-se que a contagem de votos seja favorável aos democratas na noite em que se encerra oficialmente a votação (“virada azul”’). Como resultado, uma onda de confusão pode se desenrolar  a partir da noite das eleições.

O insólito Colégio Eleitoral cria vários pontos de intervenção. Após a noite das eleições (no dia 3 de novembro), falsas alegações de votos fraudulentos podem fazer com que um procurador-geral revoltado ou outros funcionários do governo tentem suspender a contagem de cédulas ou até excluí-las.

Em 14 de Dezembro, os delegados do Colégio Eleitoral reúnem-se e votam pelo resultado do Estado. Isto é tipicamente feito sem alarde, mas em estados contestados podemos ver governadores e legislaturas estaduais enviando resultados diferentes— um refletindo os resultados dos eleitores e o outro alegando que “é uma fraude” e que “nós sabemos o que é melhor.” Isso é preocupante em estados decisivos como a Pensilvânia, onde o Governador e legislatura do estado são de diferentes partidos.

Todas estas questões são então resolvidas no dia 6 de janeiro, pelo novo Congresso. E se a Câmara e o Senado não concordarem com o resultado, então um complicado processo se abre, no qual a Câmara recém-empossada – por meio de um estado ou um voto – determina o presidente. Enquanto isso, o Senado (por maioria) vota no novo vice-presidente. (#ShutDownDC fornece uma análise visual dessas etapas.)

Durante este tempo espere por bandeiras falsas e ocasionais reivindicações. Sejam muito cautelosos com as notícias. Não passe simplesmente adiante o que parece ser um exemplo dramático de transgressões, reserve um tempo para checar se foi verificado, já desmascarado ou se vem de uma fonte em que você não confia. Incentive as pessoas em sua comunidade a se preparar para algumas semanas de incertezas. À medida que os resultados das eleições começam a chegar, a mensagem precisa ser em alto e em bom som: conte todos os votos e honre o resultado.

2. Chame isso de golpe de Estado

Uma razão para usar a linguagem de um golpe é que as pessoas sabem que é errado e é uma violação das normas democráticas — mesmo que elas não estejam familiarizadas com a definição exata de um golpe.

Expressões como “adulteração eleitoral” ou “supressão de eleitores” sinalizam deterioração do processo democrático; contudo,  se entrarmos  numa situação de golpe de Estado, o que Trump  simplesmente não irá fazer, temos que ajudar as pessoas a socorrer  nosso país para entrar em  uma pausa psíquica.

Sabemos que é um golpe se o governo:

  • Para de contar os votos;
  • Declara alguém que que não tenha tido muitos votos como vencedor; ou
  • Permite que alguém que não tenha ganhado as eleições fique no poder.

Essas são linhas vermelhas sensatas que as pessoas podem compreender imediatamente (e as quais a maioria dos americanos continua a acreditar).

As pessoas que  tomam o poder sempre dizem  que o fazem para salvar a democracia ou que sabem os resultados “reais” das eleições. Então isso não tem que parecer um golpe militar, com um líder ordenando que a oposição seja presa.

Se algum destes três princípios for violado, temos de declarar em alto e em bom tom: trata-se de um golpe de Estado

3. Saiba que os golpes de Estado foram interrompidos por pessoas comuns.

Tentativas de golpe aconteceram em todo o mundo e mais da metade falharam. Isso é porque golpes são difíceis de orquestrar. Eles são uma violação das normas que exigem a apreensão rápida de vários níveis de instituições com a alegação de que são os sucessores legítimos.

Golpes de Estado tendem a falhar quando as instituições governamentais (como as eleições) são confiáveis, quando há uma cidadania ativa e quando outras nações estão prontas para se envolver.

O papel da cidadania é crucial. Isso porque durante o período logo após uma tentativa de golpe— quando o novo governo afirma que é o governo “real” —, todas as instituições têm que decidir a quem obedecer.

Um golpe fracassado na Alemanha em 1920 dá um exemplo: a população se sentiu abatida pela derrota na Primeira Guerra Mundial e pelo alto desemprego; nacionalistas de direita organizaram um golpe e tiveram a ajuda de alguns generais para tomar edifícios do governo. O governo deposto fugiu, mas ordenou que todos os cidadãos obedecessem a ele. “Nenhuma empresa deve trabalhar enquanto reina a ditadura militar”, declararam.

A vasta resistência não-violenta rapidamente começou. Os impressores recusaram-se a imprimir os jornais do novo governo. Os funcionários públicos recusaram-se a executar quaisquer ordens provenientes do golpe. E também houve panfletos pedindo o fim do golpe foram espalhados por avião e à mão.

Há uma história do líder golpista vagando para cima e para baixo nos corredores procurando, em vão, por um secretário para digitar suas proclamações. Os atos de resistência cresceram e, eventualmente, o governo democrático (que ainda tinha graves problemas) foi devolvido ao poder.

Os momentos depois de um golpe são momentos de heroísmo entre a população geral. É assim que tornamos a democracia real.

4. Esteja pronto para agir rapidamente e não sozinho.

Tradicionalmente, as tomadas de poder são organizadas em segredo e iniciadas de repente. A maioria das campanhas que derrotam golpes fazem isso em dias: a União Soviética, em 1991, levou três dias, a França, em 1961, levou quatro dias, e a Bolívia, em 1978, levou 16 dias.

É raro o líder de qualquer país admitir publicamente que talvez não respeite os resultados de uma eleição. Há boas notícias nisso, porque quem interrompe os golpes raramente tem a chance de receber treinamento, aviso ou preparação. Dessa forma, estamos à frente do jogo.

Um grupo de membros da capital  chamado “Projeto de Integridade de Transição” (Transition Integrity Project) fez várias simulações, como o que pode acontecer se Biden vencer por uma pequena margem ou o que aconteceria caso Trump simplesmente declarasse vitória quando não há um vencedor claro. Em cada simulação, eles concluíram que um “show de números nas ruas pode ser decisivo.” As pessoas normais fazem a diferença.

Para começar a se preparar, fale com pelo menos cinco pessoas que iriam para as ruas com você —a maneira mais segura de ir para as ruas é com pessoas que você conhece e confia. Fale com pessoas que conhece no setor público e nos mais diversos cargos sobre como eles poderiam não colaborar com as tentativas de golpe. Use este tempo para se preparar para a ação.

5. Concentre-se em valores democráticos amplamente partilhados, não em indivíduos.

Na Argentina, em 1987, um golpe começou quando um major da Força Aérea,  ofendido com as tentativas de democratização  dos militares e de colocá-los sob controle civil, organizou centenas de soldados em sua base.

Enquanto o governo civil tentava negociar calmamente um acordo, as pessoas saíam para as ruas. Contra o apelo do governo, quinhentos cidadãos comuns marcharam para a base com o slogan “Viva a democracia! Argentina! Argentina!” Podiam ter passado algum tempo investindo contra o major. Em vez disso, eles estavam apelando para que seus concidadãos escolhessem a democracia.

O major tentou mantê-los afastados com um tanque de guerra, mas os manifestantes entraram na base mesmo assim, e ele sabia que disparar contra civis não violentos o faria perder mais credibilidade. Logo, 400.000 pessoas saíram às ruas de Buenos Aires para se reunir em oposição ao golpe.

Isto deu força ao governo civil (que estava em grande parte ausente). As organizações cívicas, a Igreja católica, os grupos empresariais e os sindicatos uniram-se sob o compromisso de “apoiar, de todas as formas possíveis, a Constituição, o desenvolvimento normal das instituições de governo e da democracia como único modo de vida viável.” Os golpistas perderam sua legitimidade e logo se renderam.

Esta abordagem é diferente de manifestantes indo na rua com uma lista de questões ou uma queixa contra um líder difamado. Em vez disso, está exaltando valores democráticos fundamentais amplamente partilhados. Em nosso projeto, usamos o discurso ” escolha a democracia.”

Isto afirma uma outra descoberta da pesquisa sobre anti-golpes: porque golpes são um ataque à instituição atual, lealistas à maneira tradicional — os quais poderão nunca se juntar a outras causas do movimento — estão dispostos a unir ações na rua. Isso se fizermos o apelo sobre os valores democráticos com os quais eles podem se conectar.

6. Convença as pessoas a não estagnarem ou a seguir em frente.

Imagine que no seu trabalho um chefe corrupto é despedido e um novo é trazido. Em vez de ir embora, o seu antigo chefe diz: “Ainda estou no comando. Faça o que te digo.” Alguns dos seus colegas dizem: “só recebemos ordens do antigo chefe.” Nesse ponto, surge a dúvida.

Essa dúvida prova como os golpes de Estado são bem sucedidos. Muitas pessoas ficam sem ação. Mesmo quando apenas algumas pessoas concordam com o golpe e agem como se isso fosse normal, as pessoas podem, relutantemente, aceitá-lo como inevitável.

Em toda a pesquisa sobre prevenção de golpes, há um tema comum: as pessoas param de fazer o que os golpistas lhes dizem para fazer.

Na Alemanha, desde comandantes militares a secretários, recusaram-se a obedecer às ordens do golpe. No Mali, convocaram uma greve nacional. No Sudão, manifestantes fecharam as estações de rádio apoiadas pelo governo e ocuparam pistas de aeroportos. Na Venezuela, todas as lojas estavam fechadas.

Isso é muito diferente de marchas em massa na capital ou protestos de rua fechando cruzamentos. Não se trata de protesto, mas de fazer com que as pessoas reafirmem valores fundamentais — como aparecer nos locais de trabalho de funcionários eleitos para que concordem em honrar os resultados das eleições. E não se trata de um único ponto de ações como marchas na capital — mas, sim, de ações como greves em massa de jovens e estudantes que se recusam a ir para o trabalho ou para a escola até que todos os votos sejam contados.

Golpes não são um momento para apenas observar e esperar até que “outra pessoa” resolva. Não importa quem você é, você pode fazer parte da escolha da democracia.

7. Comprometa-se com ações que representem o Estado de Direito, a estabilidade e a não-violência.

Parar um golpe depende do tamanho das mobilizações e da conquista do centro. É realmente uma luta pela legitimidade. Que voz é legítima? Algumas pessoas já terão se decidido. O objetivo, portanto, é convencer aqueles que são incertos, o que pode ser um número mais surpreendente do que se espera.

Para movê-los para o nosso lado, esse centro incerto tem de ser convencido de que “nós” representamos estabilidade e “os golpistas” representam hostilidade às normas democráticas das eleições e do voto.

Evitamos essa possibilidade quando desumanizamos desertores em potencial, fazemos declarações como “a polícia não vai ajudar”,  quando não encorajamos as pessoas a se juntarem a nós e  a criarem cenas caóticas na rua.

Historicamente, qualquer que seja o lado que recorra à violência, mais tende a perder. Num momento de incerteza, as pessoas escolhem o lado que promete a máxima estabilidade, que respeite as normas democráticas e que parece ser a aposta mais segura. É uma aposta de quem pode ser o mais legítimo.

A resistência em massa a golpes de Estado ganha com a utilização de manifestos e greves, a recusa de ordens e o encerramento da sociedade civil até à instalação do legítimo líder democraticamente eleito. Para que os movimentos de massas sejam bem sucedidos contra golpes de Estado, eles devem se recusar a fazer violência para o outro lado.

8. Sim, um golpe pode acontecer nos Estados Unidos.

Pode ser difícil imaginar que um golpe possa acontecer neste país. Mas sempre que há uma determinação para parar a contagem dos  votos, chamamos-lhe de golpe.

Mesmo pela definição mais estrita de golpes, houve um golpe de Estado militarizado nos Estados Unidos. Em 1898, após a reconstrução em Wilmington, na Carolina do Norte, vendo a ascensão de uma próspera e bem sucedida população negra, os racistas organizaram um golpe. Eles gritavam: “nunca nos renderemos a uma escória esfarrapada de negros, mesmo que tenhamos que entupir o rio Cape Fear com carcaças.”

Apesar de uma campanha terrorista antes da eleição, a participação negra foi alta, e uma chapa de candidatos negros foi votada. O empoderamento negro foi confrontado com a violência supremacista branca, com esquadrões brancos matando trinta a trezentas pessoas, incluindo funcionários recém-eleitos. Mais de três mil pessoas negras fugiram desta violência extrema, e a era de Jim Crowcomeçou.

9. Acalme-se, não tema.

É assustador acreditar que nós estamos discutindo sobre um golpe de Estado nos Estados Unidos. E nós sabemos que se a população está temerosa, ela fica menos sucinta a fazer boas escolhas.

Vamos visar à calma e evitar exageros. Seja uma fonte confiável por dupla checagem dos fatos e divulgue informações de alta qualidade. Claro, leia em redes socias… mas passe algum tempo, você sabe, fazendo coisas que fundamentem suas informações.

Respire fundo.

Lembre-se de como você lida com o medo.

Imagine outros cenários, mas não seja refém por eles.

Estamos fazendo isso para nos preparar, caso necessário.

10. Prepare-se para deter um golpe de Estado antes das eleições.

A melhor maneira de deter um golpe de Estado é não ter um. As pessoas estão fazendo um excelente trabalho em questões de direitos de voto, estimulando a participação, revelando fraudes e fazendo com que as pessoas se comprometam com a democracia. Talvez isto seja suficiente.

“A melhor maneira de impedir um golpe de Estado é detendo-o.”

Outra maneira de se preparar é direcionar a mentalide da população para entrar em ação, para que não fiquem estagnadas. A expressão clásica para essa ocasião é “se-isso-então-aquilo”, modelo criado pela Promessa de Resistência (Pledge of Resistance). Neste modelo, as pessoa se preparam para um ato dizendo “Se isto acontecer por uma causa ruim, então eu agirei”. Firmando com uma promessa antes do momento decisivo, você consegue obter maior adesão.

Com este espírito, Escolha a Democracia (Choose Democracy) criou uma promessa:

  1. Nós iremos votar.
  2. Nós iremos nos recusar a aceitar o resultado da eleição até que todos os votos serem contados.
  3. Nós iremos, de modo pacífico, às ruas caso haja intenção de um golpe de Estado.
  4. Se for necessário, nós vamos parar o país para garantir a integridade do proceso democrático.

Você pode assinar o juramento para a “Escolha a Democracia” (Choose Democracy) e juntar-se a pessoas de todo o espectro político. Esses compromissos públicos antecipados aumentam os esforços políticos para conter um golpe de Estado — porque a melhor maneira de impedir um golpe de estado é detendo-o.


Traduzido do inglês por Mariana Andrade / Revisado por Elisa Dias da Silva

O artigo original pode ser visto aquí