No dia 13 de agosto, os noticiários divulgaram que, no Espírito Santo, uma criança de dez anos havia engravidado depois de ter sido estuprada por um tio e estaria aguardando autorização judicial para realizar o procedimento do aborto legal. A criança vinha sofrendo abusos sexuais desde os seis anos de idade por parte deste tio. A notícia teve grande visibilidade depois de uma postagem de Damares nas suas redes sociais, afirmando que estava acompanhando o caso de perto e que ajudaria a criança. A partir de então, grupos fundamentalistas passaram a intervir cada vez mais no caso, fazendo campanhas contra o aborto nas redes sociais, pressionando a família e profissionais de saúde para que a criança não tivesse acesso ao direito ao aborto garantido pelo artigo 128 do Código Penal desde 1940.

No Brasil, o aborto é legalizado para casos de estupro, de risco de morte para a gestante e de feto anencéfalo. Esta criança, desta forma, teria o direito ao aborto assegurado duplamente, visto que é vítima de estupro e, por ter apenas dez anos de idade, correria risco de vida se levasse a gestação adiante. A intervenção judicial era descabida desde o princípio, uma vez que as mulheres não precisam de autorização judicial para ter acesso aos serviços de aborto legal no Brasil.

A Frente Nacional de Luta Contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto, articulação feminista que reúne movimentos feministas e outros movimentos sociais de todo Brasil, esteve ativa nos últimos dias para que a vida e a dignidade desta criança de apenas dez anos de idade fosse preservada e respeitada. Ainda na sexta-feira (14) o juiz da Vara da Infância e da Juventude de São Mateus (ES), Antonio Moreira Fernandes, autorizou aborto. A equipe médica que iria atender a menina no Espírito Santo, entretanto, se recusou a fazer o procedimento e a criança teve que se deslocar para acessar o serviço em segurança.

No domingo (16), ela viajou a Recife para realizar o procedimento no CISAM-UPE (por extenso). Antes da chegada da criança à cidade, grupos fundamentalistas tiveram acesso à informação de que ela estaria a caminho. Sara Winter divulgou em suas redes sociais, violando um sigilo judicial e os arts. 17, 18 e 247 do Estatuto da Criança e do Adolescente, o nome da criança e o hospital no qual ela realizaria o procedimento, incitando pessoas a irem ao local impedir que a criança tivesse seus direitos garantido. No início da tarde, o deputado Estadual Joel da Harpa (PP) convocou fundamentalistas em suas redes sociais, para irem ao hospital impedir que a criança tivesse direito ao atendimento garantido por lei.

Grupos fundamentalistas incitados pelos deputados Joel da Harpa e Clarissa Tércio (PSC) se juntaram na frente do hospital, chamando os profissionais de saúde de assassinos, fizeram círculos de orações, promoveram enorme aglomeração e barulho em frente a unidade de saúde, tentaram de todas as formas coagir os profissionais de saúde a não realizar o procedimento. Liderados por Joel da Harpa, o grupo tentou invadir o hospital para impedir o seu funcionamento, tendo sido impedido de entrar no prédio pela polícia. Também estiveram presentes a vereadora Michele Collins (PP) e o pastor e deputado estadual Cleiton Collins (PP).

A tarde deste 16 de agosto foi marcada por um episódio lamentável, em que aqueles que se dizem preocupados com a vida e as crianças, expuseram publicamente na internet uma menina que passou metade da sua vida sendo estuprada pelo tio, violando um sigilo de justiça, que tem como objetivo proteger essa criança de mais exposição e novos traumas, e convocaram as pessoas para irem ao hospital público para gritar palavr, constranger a criança e os profissionais de saúde. É um dia triste para a democracia brasileira e para as mulheres de todo país, que têm sua dignidade cotidianamente ameaçada por grupos de poder conservadores neste país.

Militantes feministas da Frente de Luta Contra a Criminalização das Mulheres e Pela Legalização do Aborto, do Fórum de Mulheres de Pernambuco, da Marcha Mundial de Mulheres e de outros movimentos sociais da cidade estiveram presentes no local para garantir o funcionamento do hospital, evitar que os vândalos fundamentalistas invadissem o espaço e depredassem o patrimônio público, garantir a segurança da criança e tentar buscar um pouco de paz no espaço, para que a criança fosse preservada de ainda mais violência e exposição, diante de toda situação traumática que já está vivenciando.

O procedimento foi realizado em segurança. A criança se encontra bem. A equipe médica conseguiu sair do hospital também em segurança. No entanto, grupos fundamentalistas seguiram na porta do hospital noite adentro, fazendo vigília, causando constrangimento para os profissionais do hospital e importunando outras mulheres que ali estão internadas.

A criança de dez anos de idade, vítima de estupro, teve o seu direito à interrupção da gravidez garantido, mas agora a luta continua para que ela e sua família possam ter paz, para que possa tentar retomar sua vida longe de holofotes e da pressão de fundamentalistas que não respeitam a vida das meninas e das mulheres. Todos os envolvidos na exposição da criança precisam ser julgadas pelos seus atos, que poderiam ter causado danos irreversíveis para essa criança. Que as instituições cumpram seu papel e tomem as devidas atitudes frente à irresponsabilidade de Sara Winter, Joel da Harpa, Clarissa Tércio, Michele e Cleiton Collins.

Fórum de Mulheres de Pernambuco

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