CRÔNICA

 

 

Iracema tinha um segredo. No pequeno quarto, nos fundos da casa, na rua Florentina, havia um armário muito antigo. Lá, toda família sabia que ela guardava suas joias, notas promissórias, títulos e valiosos documentos. Mas antes é preciso saber como ela conseguiu chegar a esse ponto, depois de tantas privações e trabalho.

Quando se mudou para o Rio, ainda nos anos 40, trouxe bem pouco. Havia se separado de um homem rico e decidido a viver com um outro, bem mais jovem. Aproveitou uma caravana de circo que passava pela cidade e foi com seu jovem soldado viver na capital. Seus filhos já estavam criados, só lhe faltava a liberdade e o amor.

Levava apenas uma mala de roupas e uma singer portátil, a máquina de costura que lhe renderia alguns trocados, consertando roupas das senhoras da zona norte. A placa “costura-se” foi colocada no portão de sua casa, de vila. Logo, sua habilidade se espalharia pela vizinhança, atraindo muitos mil réis.

O jovem soldado Euclides era alto, moreno, de mãos firmes e olhar jovial. Corajoso, não ligava para a enorme diferença de idade entre eles – mais de 20 anos. Juntos, tiveram uma vida de muito sacrifício, mas conseguiram comprar imóveis, ampliar suas economias e chegaram à velhice com uma enorme casa, uma vida confortável cercada de netos e muitas histórias engraçadas. Essa, do armário secreto, é uma delas.

Como eu era o único bisneto a frequentar a casa e aparentemente desfrutar da companhia deles, fui cativando confiança e testemunhando seus segredos. Havia latas de tinta escondidas no porão, local escuro e enigmático. Euclides se arriscava com cabos desencapados improvisados para “sugar” energia do poste de luz, economizando assim nas contas. Iracema tocava acordeon aos sábados e guardava suas roupas de cama novas em sacos plásticos.

Os traumas da pobreza no pós-guerra foram tantos que mesmo naqueles anos 70 seguiam se comportando como se o mundo estivesse em uma crise imensa. Meu pai dizia que ambos eram pão-duros e excêntricos, mas meu velho vivia sem dinheiro e endividado e muitas vezes foi salvo por eles, o que me fez concluir que estavam certos. Souberam guardar, sabiam como sobreviver na selva que se tornou o Brasil nos anos do regime militar.

Voltando ao armário do pequeno quarto dos fundos. Lá estava toda a riqueza. Lá estavam todos os anos de economia. Uma vez vi os dois sentados contando maços de dinheiro. Me disseram que era de mentira. Eu fiz de conta que acreditei. Eram notas com índios, perfis de índios.  Acho que 500 cruzeiros, um bom valor para a época.  Mesmo com toda economia e restrições, nada me faltava: colégio particular, sorvetes, mini laboratório de química para me estimular na ciência, livros e revistas. Chegava na banca de jornal e podia escolher muitos quadrinhos e também muita leitura de histórias, como na Seleções do Reader’s Digest, que, segundo Euclides, era o máximo da intelectualidade.

Só eu era autorizado a entrar no quartinho dos fundos quando Iracema contava e recontava sua “fortuna’.  Sentava-se em um sofazinho de camurça vermelho escuro – eles mantinham o quarto cheio de móveis quebrados; “assim bandidos pensarão que aqui não tem nada”. Até hoje não sei se era verdade ou imaginação aquela riqueza toda. Mas lembro que um dia ela decidiu me revelar seu segredo: “vem comigo, arrasta aqui esse armário”.

Iracema lentamente arrastou o velho armário. Era de mogno escuro, tinha no meio uma abertura dupla de vidro com uma cortina marrom encardida. Possuía dois cadeados enormes e um de letrinhas. Tudo para evitar que alguém entrasse ali e pudesse ver suas caixas e documentos.

“Está vendo aqui atrás?”, me perguntou sorrindo. “Não tem fundos.”

Iracema enganava a todos da casa e aos supostos ladrões com um armário que parecia impenetrável, mas que não tinha fundos. Era sua forma irônica de ver sua própria fortuna. Uma maneira jocosa de brincar com os que olhavam para o armário com curiosidade. O que existia ali dentro, de verdade, nunca soube.  Durante anos minha imaginação criou barras de ouro, escrituras de castelos.

Sua vida simples se explicava por ser uma pessoa econômica, mas todos da família recorriam a ela como uma agência bancária. E todos pensavam que o futuro estava garantido porque ela teria economizado para as gerações seguintes.

Quando morreu, no final dos anos 70, eu tinha 13 anos e meu mundo caiu. Não soube do paradeiro do velho armário, me disseram que não havia nada de valor dentro dele, apenas papéis e recordações. Quem sabe era tudo mesmo um jogo de imaginação? Quem sabe Iracema nos deixou a melhor herança possível, que foi sua vida de superação, coragem, amor e otimismo?

Todos seguimos pobres depois que partiu.  Euclides me acompanhou por vários anos ainda, concedeu tudo aos filhos dela e terminou sua vida naquele quarto, morando como hóspede de um patrimônio que ajudou a construir. Ironias da vida.

O quartinho secreto de Iracema guardou e guarda muitos segredos de família. O maior deles, no entanto, foi a herança de uma infância repleta de histórias fantásticas e criativas – o melhor presente que uma criança pode receber.


Revisão: Silvio Barsetti