Qual a diferença entre os sobrenomes Moraes e Queiroz? Para entender como funciona a justiça brasileira é preciso, antes de mais nada, entender o que distancia um cidadão do outro e mergulhar de olhos vendados no pântano que se tornou o poder judiciário no Brasil de 2020. Nas águas turvas e podres em que se banham homens, considerados íntegros e acima de qualquer suspeita, mora também um monstro chamado seletividade.

 

Em a “opera do Malandro”, Chico Buarque foi didático, quando em “Hino a Duran,” revelou que a espada dos homens justos fere com mais força  e de morte, os bebês mal nascidos que se desviam da rota no meio caminho.

“Se tu falas muitas palavras sutis
Se gostas de senhas sussurros ardís
A lei tem ouvidos pra te delatar
Nas pedras do teu próprio lar.

Se trazes no bolso a contravenção
Muambas, baganas e nem um tostão
A lei te vigia, bandido infeliz
Com seus olhos de raios X.

Se vives nas sombras frequentas porões
Se tramas assaltos ou revoluções
A lei te procura amanhã de manhã
Com seu faro de doberman”

O Brasil se orgulha de ter o maior número de faculdades de direito do mundo, no entanto, a percepção de justiça entre nós, está desconectada desse ranking. Basta um olhar caolho para o sistema prisional brasileiro para entender que a aplicação da lei, além de mercantilista, revela que o etnocentrismo é  elemento principal na formação da jurisprudência que norteia as decisões de nossas  instâncias jurídicas.

Quando decisões seletivas acontecem, o mundo jurídico pode até dar uma esperneada, mas, o espirito corporativo criou carapaças fortes de autoproteção, muitas vezes, referendadas pelas instituições, imprensa ou por grupos que comungam dos mesmos interesses.

De acordo com o professor de Direito Constitucional Lenio Streck, “o Direito no Brasil foi feito para proteger as camadas dominantes”.

Na decisão de transferir Fabrício Queiroz para a prisão domiciliar podemos encontrar um rastro de vícios comuns na justiça brasileira, que passa pela seletividade e politização das sentenças  judiciais.

Além de beneficiar Queiroz, o ministro João Otávio Noronha, presidente do Superior Tribunal de Justiça estendeu o benefício à uma foragida, alegando, que, por causa do estado de saúde do investigado, a convivência com a esposa era importante para a manutenção dos cuidados de saúde dele. O presidente  do STJ, em sua decisão, desconsiderou completamente, o fato de Queiroz viver, a mais de um ano, sozinho e escondido na casa do advogado Frederick Wassef – defensor da família Bolsonaro, que está na linha central das investigações que envolve Fabrício e a esposa Márcia Aguiar.

Enquanto isso, depois de várias tentativas da família Moraes para tirar da prisão, um jovem que cometeu o grave delito de se deixar prender com algumas gramas de maconha, enterra o filho, vítima da Covid-19  numa cadeia de Minas Gerais.  Seria trágico, se não fosse vergonhoso demais, para toda a instituição chamada Justiça.

Há uma fila de processos com milhares de pedidos de presos, que estão no grupo de risco, amontoada pelos tribunais nas 27 unidades federativas, mas justamente, o caso Queiroz foi premiado para receber a atenção do presidente do Superior Tribunal de Justiça, que optou por sacrificar suas férias e assumir o plantão judiciário durante todo o mês de julho – quando acontece o recesso e é feito uma escala com vários integrantes do STJ. A decisão de Noronha, no caso Queiroz, vai na contra mão de outras decisões, onde o magistrado negou o mesmo direito à prisão domiciliar para outros cidadãos do grupo de risco, como idosos e portadores de doenças crônicas durante a pandemia.

O outro personagem dessa história macabra, Lucas Moraes, de 28 anos, preso por tráfico de drogas, com menos de 10 gramas de maconha e condenado em primeira instância, morreu e no presídio de Manhumirim, na zona da mata mineira,  onde ele cumpria a pena, existem 159 detentos que testaram positivo para o novo coronavírus.

Na penitenciária mineira estão confinados 200 presos e quando 43 deles testaram positivo para a Covid -19, os familiares fizeram protestos e não sensibilizaram a justiça brasileira. O vírus se multiplicou em poucos dias, passando para 159 casos positivos e causando a morte de Lucas. Mesmo assim, Noronha não se sensibilizou da mesma forma que o fez no caso Queiroz.

Há uma vaga no STF no meio do caminho

João Otávio de Noronha está sendo apontado como um dos principais nomes para a vaga do decano Celso de Mello no Supremo Tribunal Federal. Durante a cerimônia de posse do Ministro da Justiça, André Mendonça, o presidente Bolsonaro afagou Noronha publicamente, dizendo:

-“Prezado Noronha, permita-me fazer assim, presidente do STJ. Eu confesso que a primeira vez que o vi foi um amor à primeira vista. Me simpatizei com Vossa Excelência”.

O vômito é livre. Alguns dias mais tarde, o presidente do Superior Tribunal  derrubou as decisões da justiça que obrigavam o presidente Bolsonaro a revelar o resultado dos seus exames de coronavírus. No currículo de Noronha a favor de Bolsonaro há também a derrubada das decisões que impediam a posse de Sérgio Camargo na presidência da Fundação Palmares.

Nomeado para o STJ pelo ex- presidente Fernando Henrique Cardoso, Noronha tem como sua principal bandeira, a criação do TRF-6, o Tribunal Regional Federal em Minas Gerais. O Brasil já conta com cinco tribunais regionais e existe forte oposição à criação de mais um, sob os argumentos incontestáveis  de crise fiscal e falta de recursos.

Há dez anos, uma pesquisa do IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada mostrava que o brasileiro não acredita na justiça e a classificava como desonesta, lenta, cara, parcial e injusta. E de lá pra cá, decisões como a do presidente do Tribunal Superior de Justiça alimentam ainda mais esse descrédito e colocam novos ingredientes  nessa massa, como seletividade e politicagem.

Resta a nós, torcer para que as milhares de faculdades de direito de nosso país, reforcem suas aulas sobre a mitologia da justiça e ensinem aos nossos doutores o principio básico dessa donzela que se mantém virgem e se impondo com a autoridade de quem não se deixa seduzir ou corromper e quem sabe assim, Moraes e Queiroz passam a ter o mesmo peso na balança, mesmo que estejam em lados opostos.