Por Laura Astrolabio

 

“Nós negros temos sido profundamente feridos, como a gente diz, ‘feridos até o coração’, e essa ferida emocional que carregamos afeta nossa capacidade de sentir e consequentemente, de amar. Somos um povo ferido. Feridos naquele lugar que poderia conhecer o amor, que estaria amando.”
bell hooks, em “Vivendo de amor”

 

As pessoas brancas antirracistas que eu (vou escrever esse texto na primeira pessoa) conheço até têm “amigues” pretos, mas onde esses/essas amigues estão nas fotos? Onde esses amigues estão no convívio? No convívio de fato. Frequentam suas casas? Saem pra tomar cerveja com elas? Saem pra jantar com elas? Qual o nível de troca de afetos e proximidade (aqui não estou falando da empregada doméstica)?

Pessoas brancas antirracistas precisam olhar para os lados, não “apenas” com a lente dos livros e das notícias. Olhar para os lados tendo como cenário suas próprias vidas, porque suas próprias vidas refletem exatamente aquilo que elas dizem que repudiam.

Outro dia escutei que uma democracia forte precisa ter uma Defensoria Pública forte. Li concordando, mas lembrei a cor dos defensores públicos, a cor que predomina na citada instituição, de maneira que as exceções só confirmam a regra. O que será que estão pensando sobre isso e o que estão fazendo com relação a isso quando estão elaborando seus pensamentos a respeito de democracia? Porque enquanto houver racismo não haverá democracia.¹

E aqui continuo a saga de questionar a branquitude.

Quais são os ambientes que frequentam? Aqueles ambientes bem eurocêntricos
cheios de pessoas brancas? O preto para ser amigo do branco antirracista tem que ser aquele preto, digamos, graduado e pós graduado? O viajado? Ou o famoso? Aquele que pode frequentar esses espaços que inclusive não foram criados para receber corpos negros?

Bem, o que é que pessoas brancas antirracistas conhecem dos lugares que pessoas negras frequentam? Já foram lá para além de dar aulas, assistência jurídica ou política, por exemplo? E fizeram amigos e amigas por lá? Se fizeram, por que nas fotos estão sempre apenas rodeados de pessoas brancas da mesma classe social?

“Vidas negras importam, desde que elas fiquem lá e eu aqui. Não precisamos interagir. Eu posso até falar a respeito da opressão que elas vivem, me posicionar contra, ir no protesto, mas sem intimidades”. É sobre isso?

Percebam como os corpos matáveis são aqueles mesmos corpos indignos de amor. Os corpos não matáveis são aqueles mesmos dignos de amor.

Ilustração Dayse Gomis

Eu e tantas milhares de pessoas negras estamos muito feridas. Então, quase tudo que uma pessoa branca antirracista faça a gente olha e primeiro fala o óbvio : “não tá fazendo mais do que obrigação”. E é verdade. E a gente também olha algumas manobras na tentativa de acertar e a gente critica, porque acabam errando mesmo. Acham que racismo é algo corriqueiro que se resolve de qualquer jeito? Tem que conversar muito com a gente. Tem que ler muito o que a gente escreve. Tem que conviver com a gente.

É preciso ir além do observar o lugar de fala para começar a pensar sobre uma coisa chamada lugar de escuta. Porque falar todo mundo pode, desde que tenha boca. É preciso saber se estão escutando o que pessoas negras estão falando e o que estão fazendo com o que estão escutando.

Eu e outras tantas pessoas negras estamos feridas com esse racismo que beneficia pessoas brancas, mesmo as antirracistas, mesmo que elas não queiram, que já estamos feridas entre nós também.

Eu e outras tantas pessoas negras procuramos o colo dos Orixás, o amor e a sabedoria ancestral dos nossos babalorixás, o afeto dos irmãos de candomblé. Fazemos nossos rituais de cura. Mas estamos muito feridos. Não basta ser antirracista, tem que ter hiperempatia.

Quer dizer, tem que ter uma dose ultra extra de empatia nessa empatia que dizem ter. O tempo todo. Pessoas negras vivem atentas o tempo todo com medo de serem assassinadas pelo Estado, então pessoas brancas antirracistas conseguem elevar o nível de empatia.

Esse termo, hiperempatia, eu aprendi no livro de ficção científica da Octavia Butler, “a parábola do semeador” (pessoas brancas antirracistas deveriam ler esse livro. É uma distopia e foi escrito por uma mulher negra estadunidense simplesmente incrível).

Pessoas brancas antirracistas também precisam parar de adotar o negro único e precisam entender que pessoas negras não formam um bloco homogêneo. Pessoas negras são diversas, inclusive no tom de pele. Existem 35 tons de pele negra. É sobre a diversidade dentro da diversidade que estou falando.

Aliás, as pessoas brancas deveriam aderir ao movimento de ler autores negros, um por mês. Escolham gêneros literários diferentes. Romance histórico, distopia, também os de ciência sociais, política e etc.

Ilustração Dayse Gomis

Essa questão da convivência, da troca de afeto, das fotos só com pessoas brancas ou com o negro único é muito pesada. É algo que pessoas brancas antirracistas precisam refletir. De verdade. Isso é algo que precisa acabar, porque é sobre aderir, de forma consciente ou inconsciente, a segregação racial em que vivemos, porque vivemos numa sociedade segregada e acredito que nenhuma pessoa branca antirracista duvide disso. Mas se a pessoa é uma pessoa branca antirracista, ela não pode aderir essa segregação. Ela tem que contestar isso começando pela própria vida, olhando ao redor.

Sempre.

E sobre relativizar as feridas abertas pelo racismo brasileiro nas pessoas negras, que são tantas…

Nunca.


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