Com esta pergunta começamos uma série de textos que debaterão o papel das mulheres na construção do modelo de saúde ocidental.

Um mundo em mudança permanente

É fato que o mundo está atravessando mudanças importantes, sendo o mundo binário que conhecíamos e organizava as pessoas em Mulher-Homem (biológico), Heterosexual-Homosexual (orientação sexual), Masculino-Feminino (identidade de gênero) começa a abrir espaço para a diversidade de um grande arco-íris de possibilidades. Possibilidades essas que sempre existiram, entretanto eram negadas, ocultadas ou degradadas.

Também há uma mudança importante nos formatos familiares. O modelo ocidental prevalente no nosso imaginário é aquele em que família significa um núcleo composto por uma mulher, um homem e filhas e/ou filhos, porém este não corresponde em absoluto com a realidade, sendo que em média apenas 30% dos lares tem essa composição e as demais famílias incluem muitas vezes várias gerações convivendo (pais, mães, avós, netos), famílias monoparentais ou com pais e mães do mesmo sexo, entre outras diversas possibilidades.

Enquanto esse novo mundo se anuncia, há ainda, um deficit importante de políticas em saúde das mulheres, que são aproximadamente metade da população mundial. São mulheres todas as pessoas que se identificam com esse gênero tendo nascido ou não em um corpo feminino.

Se aspiramos a um sistema de saúde onde todos os seres humanos estejam incluídos e contemplados, é preciso pensar a partir das perspectivas de gênero e interseccionalidade; ou seja, relacionar gênero com classe socioeconômica, etnia, idade, orientação sexual, nacionalidade, entre outras.

Conferências Mundiais das Mulheres da ONU

Desde 1975, a ONU já realizou 5 Conferências Mundiais da Mulher tendo sido a primeira no México e a última, em 1995, em Pequim. Essas conferências geraram pautas mundiais para melhorar a vida das mulheres em diversos setores. Sendo que em Pequim foi definido o conceito de gênero, além das 12 áreas para atuação para políticas para as mulheres, entre elas: Mulheres e Pobreza, Educação e Capacitação de Mulheres, Mulheres e Saúde, Violência contra a Mulher, Direitos das Meninas.

Em 2019, a ONU lançou um novo relatório “O Progresso das Mulheres no Mundo 2019-2020- famílias em um mundo de mudanças” http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2019/06/Progress-of-the-worlds-women-2019-2020-en.pdf onde analisou o acontecido desde Pequim e projetou a condição de saúde, relações de família e gênero, cobertura universal de saúde, incluindo cobertura sexual e serviços de saúde reprodutiva. O relatório analisou amplamente a questão da família e o papel crucial que as mulheres ainda cumprem no núcleo familiar, apesar das diversas configurações de famílias.

Segundo a OMS: “Igualdade de gênero em matéria de saúde significa que mulheres e homens tenham igualdade de oportunidades para compreenderem seus plenos direitos e o mesmo potencial para gozar de boa saúde, contribuir para o desenvolvimento da saúde e beneficiar-se com os resultados.”

Mulheres, cuidado e trabalho doméstico

Estudos apontam que as mulheres, em geral, são responsáveis três vezes mais pelo cuidado e atividade doméstica não remunerada, ficando responsáveis majoritariamente pelo cuidado de crianças e adultos em diferentes contextos, independente de serem mãe, esposa ou filha, netas ou avós.

Outro agravante é que os países com maior taxa de natalidade são os que fornecem menos infra-estrutura e políticas para as mulheres. Em 61 países sem água potável no local, os responsáveis por providenciar água em 80% dos lares, são as mulheres e meninas.

Porém, não é correto pensar que somente nos países mais pobres as mulheres são sobrecarregadas com o trabalho doméstico. Ao compararmos o tempo gasto por dia com atividades domésticas, nos países pobres, as mulheres gastam em média 263 minutos de trabalho doméstico não remunerado, enquanto nos países ricos, gastam 231 minutos por dia, ou seja, uma diferença somente de 32 minutos por dia.

É importante pensar o lar como um local de educação em saúde, onde começa a saúde primária. É no lar que se aprende sobre hábitos alimentares, ritmos de descanso e sono, hábitos de higiene, hábitos em geral, como realização ou não de atividades físicas e atividades de lazer, que terminam impactando na saúde. Além é claro da importância emocional e psicológica que o lar representa para a maioria das pessoas, sendo um local de identidade, pertencimento e de restabelecimento psicofísico diante das demandas do mundo que se vive.

Nesse ponto, chegamos a uma das maiores contradições mundiais, as mulheres e meninas que levam adiante as atividades domésticas e mantém os lares como lugares de segurança para outras e outros, são precisamente no domicílio que sofrem as maiores violências físicas e psicológicas. Ainda é frequente que nos lares ao redor do mundo as mulheres tenham menos direito a comida, menos autonomia, menos oportunidades de descanso, além do brutal fato de 1 em cada 5 mulheres sofrerem violência física ou sexual dentro de casa.

Está claro que todas essas questões não serão resolvidas na esfera doméstica, são e serão as políticas públicas que promovam igualdade, justiça e proteção às mulheres e meninas que podem alterar o destino de quase metade da humanidade. Sabe-se, por exemplo, que nos países onde se investe em educação secundária há declínio da gravidez na adolescência e casamento precoce.

O relatório faz ainda um alerta: “Nos últimos anos nota-se uma reação contra os avanços nos direitos e liberdades das mulheres em casa e na esfera pública tentando negativamente retomar papéis de gênero mais “tradicionais”, fomentando uma volta ao passado que é mais imaginado do que real”.

Em nossa próxima análise veremos quem eram as “bruxas” da Idade Média que foram perseguidas e exterminadas na Europa.

Afinal, eram as bruxas curandeiras?  https://www.pressenza.com/pt-pt/2020/02/mulheres-02-eram-as-bruxas-curandeiras/

 

Para Rehuno- Flavia Estevan.        flaviaestevan@gmail.com

http://www.onumulheres.org.br/planeta5050-2030/conferencias/

http://www.paho.org/hq/dmdocuments/2010/gender-equality-in-health-sp.pdf

http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2019/06/Progress-of-the-worlds-women-2019-2020-en.pdf
Theobald, Sally et al. “20 years of gender mainstreaming in health: lessons and reflections for the neglected tropical diseases community.” BMJ global health vol. 2,4 e000512. 12 Nov. 2017, doi:10.1136/bmjgh-2017-000512