“Como é possível que não esperemos uma insurgência indígena e camponesa se a pobreza rural cresceu e quase dobrou nestes anos?”, questiona Ramón Torrez Galarza

Vanessa Martina Silva

As imagens que chegam de Quito, no Equador são impactantes. Milhares de jovens, mulheres, trabalhadores e, principalmente, indígenas ocupam a capital do país em total descumprimento ao toque de recolher imposto pelo governo de Lenín Moreno.

A situação se agrava e não há, em curto prazo, perspectiva de um diálogo entre os insurgentes e o governo, que impôs um pacote de duras medidas neoliberais para cumprir com as determinações do Fundo Monetário Internacional (FMI).

Na avaliação do ex-embaixador itinerante para temas estratégicos da chancelaria equatoriana durante a gestão do ex-presidente Rafael Correa, Ramón Torrez Galarza, “o Estado de direito no Equador está sendo violentado pelas políticas de ajuste neoliberal” e isso se reflete na greve geral inédita que está sendo realizada no país.

Galarza também é escritor e atualmente dirige o Programa Regional Latino-Americano de Pesquisa e Docência “Democracias em Revolução, Revoluções em Democracia”, do Instituto de Altos Estudos Nacionais IAEN, do Equador. Ele conversou com a reportagem da Revista Diálogos do Sul diretamente de Quito. O vídeo completo você confere no final da reportagem. A seguir, reproduzimos os melhores trechos da entrevista:

Intervenção

Os levantes indígenas são muito importantes no Equador e já derrubaram três presidentes entre os anos 1990 e 2000. Mesmo sabendo da força da indignação popular, o governo de Moreno preferiu acusar o ex-mandatário Correa e o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, de estarem fomentando os protestos para desestabilizar o seu governo.

Galarza não concorda com essa hipótese. Para ele, Maduro já tem “vários e sérios problemas para resolver na Venezuela” não teria por que se envolver nas questões de outros países. Quanto a Correa, ele opina que “na psicologia social de Moreno, foi inoculada uma terrível e maléfica ideia de colocar a culpa de tudo em Correa. A onipresença dele em tudo que de bom tudo de ruim acontece no Equador faz com que o morenismo e esse governo pareça de uma esquizofrenia de perseguição correísta”.

Moreno foi eleito para dar continuidade ao processo conduzido por Correa, mas abandonou a política progressista e deu um giro neoliberal, observa o diplomata. Ele não considera, no entanto, que se trate de um movimento pela volta de Correa:

“O principal problema do Equador tem a ver com um projeto político e de liderança que exceda os limites do processo anterior e atualize as demandas atuais que temos como nação. Porque é óbvio que temos que ser capazes de pensar um projeto com todos, um projeto para todos.”

FMI

Ele explica que “o neoliberalismo está sendo aplicando na América Latina a sangue e fogo” e que “vivemos uma ditadura neoliberal do capital e do capitalismo em função de lucros corporativos e empresariais, que prescindem dos Estados e das democracias para operar livre e impunemente e garantir os privilégios do capital sobre a sociedade, os Estados, as pessoas e a natureza”.

Esse processo, no entanto, não é livre de oposição e resistência. “No momento em que o Equador, para aplicar suas medidas de ajuste neoliberal, faz um acordo com o FMI, estabelece um desacordo profundo com seu povo”.

“Não existe nenhum país do mundo que com as receitas de ajuste do FMI tenham conseguido superar as condições de marginalidade, de exclusão, de desigualdade e atraso. Ao contrário. Todas as receitas do Fundo pioraram as crises econômicas, de equidade e distribuição em todos os países em que interveio”, avalia.

Insurgência

Questionado se a saída para a atual crise passa pela renúncia de Moreno, como pedem alguns setores insurgentes, ele pondera que só quem pode decidir isso é o povo mobilizado e que, durante séculos, foi excluído das formulações políticas de seu país, um aspecto que não foi completamente solucionado pela Revolução Cidadã.

“Nesse sentido, hoje se insurgem novamente os povos indígenas para representar um déficit na história, que é a construção de comunidades de estados pluriétnicos, multiculturais. Estados que reconheçam a diversidade, não como uma ameaça, mas uma oportunidade a favor da economia, das culturas, em favor do desenvolvimento social, político e econômico de nossas nações.”

Além de não terem sido incorporadas totalmente às políticas do país, os ajustes neoliberais impõem às comunidades indígenas uma crescente pauperização.

“A pobreza rural passou de 38,2% em 2016 para 43,8% em 2019. Então, como é possível que não esperemos uma insurgência indígena e camponesa se a pobreza rural cresceu e quase dobrou nestes anos?”, questiona.

Enquanto a pobreza cresceu, o lucro dos bancos segue “extraordinário”, “passou de 396 milhões em 2017 para 550 milhões em 2018”, observa Galarza.

Nesta conversa com tons poéticos e filosóficos, o intelectual equatoriano também falou sobre a importância e os limites da integração regional, que foi feita de forma burocrática, sem os povos, e avaliou a atual conjuntura latino-americana em que abundam as perseguições judiciais a líderes políticos e avaliou a nova onda neoliberal regional.

Veja o vídeo completo da entrevista (é possível ativar a legenda clicando na roda dentada do YouTube):

O artigo original pode ser visto aquí