Para Diretor do Centro de Medicina Baseada em Evidências da Escola Bahiana de Medicina, excesso de diagnósticos e intervenções revelam necessidade de mudanças do sistema de saúde

Reduzir custos para chegar a mais pessoas é um dos maiores desafios no sistema de saúde de diversos países. Normalmente imagina-se que reduzir custos significa piorar ou diminuir a assistência. Entretanto, está cada dia mais claro para profissionais e organizações de saúde, que a solução está em diminuir intervenções que, apesar de serem praticadas rotineiramente, quando avaliadas, mostram que não melhoram os desfechos e muitas vezes podem piorar as condições de saúde do paciente.

Um estudo norte americano recentemente mostrou que exames laboratoriais, por exemplo, representam 5% do orçamento hospitalar e influenciam entre 60% e 70% de todas as decisões médicas (como tempo de internação, alta e medicação). Apesar de 5% parecer um gasto baixo, essas decisões desencadeiam outra série de gastos como tratamentos desnecessários com possíveis efeitos adversos. Para dar um exemplo, coletas excessivas de sangue podem levar a anemia em até 20% dos pacientes durante internação hospitalar, um risco aumentado para pacientes cardíacos e com problemas pulmonares. Além disso, são rotinas que interrompem o descanso, influenciando na quantidade e qualidade do sono e também aumentam o risco de infecção.

Estudos sugerem que uma redução entre 8% e 19% das solicitações desnecessárias significam uma economia entre US$ 600 mil e US$ 2 milhões por ano.

Nesse contexto de excessos de diagnósticos e intervenções, começam a surgir movimentos que tentam chamar a atenção para a importância da mudança de paradigma como o Chossing Whisely e Slow Medicine que se utilizam da Medicina Baseada em Evidência para analisar racionalmente o uso dos recursos e dos procedimentos.

Para falar sobre esses assuntos, a REHUNO Saúde entrevistou Luis Correia, MD, PhD Diretor, Centro de Medicina Baseada em Evidências – BAHIANA – Editor-chefe do Journal of Evidence-based Healthcare, Professor Adjunto da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, Co-diretor do Choosing Wisely Brasil – Coordenador da Cardiologia do Hospital Aliança. Autor do blog: http://medicinabaseadaemevidencias.blogspot.com/ 

REHUNO: Existe um conceito pouco conhecido pelos profissionais de saúde e menos ainda pela população em geral, que é Prevenção Quaternária. O que é a prevenção quaternária, como ela surgiu e qual a diferença com a prevenção em geral?

DR. LUIS CORREIA: Prevenir em medicina significa fazer alguma coisa para diminuir a probabilidade de um desfecho desfavorável. Já a prevenção quaternária é evitar, exatamente, o overdiagnosis, ou seja, o excesso de diagnósticos. Muitas vezes na medicina se fazem investigações que promovem diagnósticos que, apesar de estarem corretos, são inúteis e fúteis. Diagnósticos que não promovem uma conduta que será benéfica para o paciente.

Eu não gosto desse termo prevenção quaternária porque, para quem não conhece, ele não significa nada e ainda ele confunde com a prevenção propriamente dita. A prevenção é um ato e a prevenção quaternária pelo contrário, é uma não-ação, ou seja, agir menos.

REHUNO: Qual seria o melhor termo então?

DR. LUIS CORREIA: Podemos utilizar a expressão “Choosing Wisely”, ou seja, “escolher sabiamente”. Choosing wisely é uma campanha internacional, exatamente da promoção do “menos é mais”. Claro que existem situações onde temos que fazer muito, mas há muitas situações clínicas onde “menos é mais” e Choosing Wisely promove exatamente essa forma de pensamento.

REHUNO: Quais são as consequências do excesso de diagnósticos?

DR. LUIS CORREIA: O excesso de diagnósticos promove o excesso de tratamentos, então, quando se fala de prevenção quaternária, é prevenir esse uso inapropriado de recursos médicos, que se chama também de Overuse, ou seja, uso em excesso. Temos esse hábito, de utilizar em excesso condutas médicas, para gerar uma sensação de certeza que, fazendo isso, o paciente não terá nada. Com o surgimento dos recursos para diagnósticos vai-se gerando a expectativa de que a medicina vai prevenir tudo, e surge exatamente esse paradigma de prevenção, que é muitas vezes um paradigma inadequado.

REHUNO: Hoje é comum a ideia de que prevenção é ir ao médico e fazer exames.

DR. LUIS CORREIA: Sim, essa é a ideia de prevenção hoje, é como se eu quisesse fazer coisas para me garantir. No entanto, essa garantia não existe, em termos de saúde, não é? Se os diagnósticos pudessem garantir que não teremos os eventos, ou seja, as doenças, seria ótimo, mas tem coisas que não garantem nada, no máximo, uma atitude médica reduz a probabilidade, mas não garante.  Mas a mente humana tem aversão a incerteza e tenta se livrar dessa incerteza, gerando uma certeza platônica que não teremos nada, não é? Então é esse mecanismo, psicológico, da mente humana, nós somos assim, porém isso nos leva a uma série de atitudes inapropriadas, que tem a intenção de causar bem, mas tem maior probabilidade de causar mal.

REHUNO: Onde está o Brasil nesse cenário em relação ao mundo? Nós fazemos mais exames e geramos mais diagnósticos que outros países?

 DR. LUIS CORREIA: Em relação ao Brasil, não é diferente de outros lugares do mundo, esse é um fenômeno universal, esse fenômeno da tendência ao overuse é universal. Existem sistemas de saúde que controlam mais isso. Os sistemas principalmente universais de saúde como Canadá, Inglaterra e outros países da Europa, de uma maneira geral, possuem uma medicina mais socializada, e naturalmente para ter recursos universais, a gente precisa pensar em racionalizar o uso de recursos, então, eu diria que nesses locais, existe uma racionalização maior, existe menos overuse.

REHUNO: Nesses países é menor o overdiagnosis, por exemplo?

DR. LUIS CORREIA: Não é que não exista, a tendência ao uso em excesso é universal. Quando você olha sistemas de saúde que não são tão socializados, como o sistema de saúde norte americano, é um sistema que preza por prover o melhor, a melhor assistência possível, a quem tenha acesso àquela assistência. Diferente de um sistema, vamos comparar, da Inglaterra, que preza por prover a universalidade da assistência e não necessariamente a melhor possível ou tudo que a pessoa mereça. Então, se na Inglaterra existe uma preocupação com dar saúde a todo mundo, naturalmente, existe uma espera maior, os tratamentos não são feitos tão imediatamente.

Nos Estados Unidos, que não existe o sistema de saúde universal, não existe a preocupação com a universalidade, a preocupação é que as coisas sejam feitas de forma rápida, que os pacientes não esperem, e que tudo seja feito, que não exista escassez. Então fica mais livre, nos Estados Unidos, para o fenômeno do overuse. E não é um sistema de saúde ruim não, é o melhor do mundo, só que ele não consegue atingir todo mundo, justamente porque o gasto é excessivo.

REHUNO: E um modelo como esse norte-americano, influência outros países?

DR. LUIS CORREIA: Acaba que a gente tem esses países de medicina socializada, exercendo uma maior racionalidade, e os Estados Unidos exercendo menos, porque a preocupação deles é em oferecer rapidamente, fazer com que as pessoas não esperem para serem atendidas, não tenha filas e deve dar sempre, o melhor. E as pessoas começam a achar que “o melhor é o mais e o mais é o melhor”. Mas nem sempre o mais é o melhor. E é aí, nos Estados Unidos, onde justamente surgiu o Choosing Wisely, por causa dessa percepção do overdiagnosis.

O Brasil imita os Estados Unidos de uma maneira piorada, porque o Brasil tem o sistema de saúde suplementar, que é o que os ricos usam. Se você comparar, por exemplo, o número de cesáreas que se fazem no Brasil e nos Estados Unidos, aqui é muito maior, assim como a quantidade de ultrassons em uma gravidez.

Então, na verdade o sistema de saúde suplementar brasileiro é quase uma caricatura do americano, porque ele pega esse modelo, de utilização das coisas, e piora no sistema suplementar.

REHUNO: E isso tem algum impacto sobre o SUS?

DR. LUIS CORREIA: Nós temos o nosso sistema de saúde universal, o SUS, a exemplo desses países da Europa. É um sistema de saúde universal do qual nós temos que nos orgulhar, porque é o único sistema de saúde universal que cobre uma população de 200 milhões de pessoas. Todos esses países de sistema universal tem uma população muito menor. Mas a gente naturalmente acaba tendo uma dificuldade de recursos pelas nossas condições, e pelo número de pessoas.

Aí entra um paradoxo, porque essa cultura do sistema de saúde suplementar acaba atingindo o SUS e então vemos overuse no SUS, solicitação de exames exagerados, exames inadequados que às vezes entram pela judicialização do SUS. E no momento em que se disser, “-Olha, isso nós não vamos prover”, a população vai achar que o sistema é insuficiente, e nem sempre é isso.

Se a gente disser, não vamos mais fazer rastreamento de câncer de próstata, ou PSA nos homens, porque isso leva ao excesso de diagnósticos, a população pode achar que é porque o SUS não provê o que precisa prover.

Então existe esse paradoxo, até mesmo ser racional no SUS pode levar a interpretações inapropriadas da população. Precisamos discutir mais o sistema de saúde suplementar, e ele precisa melhorar e o SUS precisa ser mais racionalizado.

REHUNO: Precisamos discutir com a população?

DR. LUIS CORREIA: É uma discussão que a gente tem que ter com a população, ou seja, uma mudança cultural, nós temos que dialogar com a população, explicar que não precisamos fazer um monte de exames. Outro ponto é que os médicos vão à televisão, nesses programas ridículos de saúde, como o da TV Globo de manhã, e vai lá um médico e fica falando para fazer todos os exames promovendo essa cultura.

Então, não é culpa da população, que tem uma cultura de fazer exames. A própria classe médica, profissionais da saúde, promovem essa cultura. Precisamos mudar o tom, começar a conversar, começar a promover uma mudança cultural que tem condições de acontecer nas próximas duas décadas, para que a gente chegue num ponto de racionalização.

 

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Fontes Consultadas:

Eaton KP, Levy K, Soong C, et al. Evidence-Based Guidelines to Eliminate Repetitive Laboratory Testing. JAMA Intern Med. 2017

Relatório Mundial de Saúde 2010: Financiamento dos Sistemas de Saúde https://www.who.int/eportuguese/publications/WHR2010.pdf?ua=1

Salisbury AC, Reid KJ, Alexander KP, et al. Diagnostic Blood Loss From Phlebotomy and Hospital-Acquired Anemia During Acute Myocardial Infarction. Arch Intern Med. 2011.