Entrevista com Felipe Antonio Honorato, professor universitário e colaborador da Pressenza, sobre as relações do Estado Brasileiro no que tange às políticas públicas voltadas para a população negra.

Pressenza – Durante o período da colonização houve um debate realizado pelo alto clero católico sobre os negros e povos originários das Américas. De qual forma tal debate, e suas decisões, influenciaram no processo de desumanização destas pessoas?

Felipe Honorato – Houve, no Império Espanhol, a chamada Controvérsia de Valladolid, em que Carlos V, rei espanhol, convocou Ginés de Sepúlveda e Bartolomé de las Casas para discutir que direito tinha a Espanha de se apropriar dos bens dos habitantes do novo mundo. Não houve consenso, mas, após  a controvérsia, ficou convencionado que os povos originários não poderiam ser escravizados. Isso foi determinante para que se iniciasse a vinda de negros africanos escravizados às Américas. Em Portugal, por exemplo, esse tipo de debate não ocorreu. A escravização acabou por inferir em diversas práticas de desumanização – negação de direitos, separação de famílias, subjugação cultural, violência física e simbólica… No entanto, conhecimentos específicos que ajudavam o metropolitano no advento da exploração colonial não entravam neste processo de tentativa de descaracterização e desumanização ao qual os africanos negros escravizados eram submetidos: tive a oportunidade de acompanhar, ainda neste mês de abril, uma palestra da antropóloga Sheila Walker em São Paulo. Sheila é, sem dúvidas, uma das maiores estudiosas da diáspora negra pelo mundo e ela defende que a grande presença de africanos da Costa da Mina na exploração do ouro em Minas Gerais durante o período colonial não é coincidência; esta povo tem uma tradição secular em produzir peças de ouro e, por isso, detém muito conhecimento da exploração deste mineral precioso e, segundo a antropóloga relatou, trouxeram muito da tecnologia utilizada nas Minas Gerais.

P. Qual é a situação do negro do Brasil atualmente?

F.H. – Após o processo de extinção legal da escravização de negros, não houve a adoção de políticas de reparação. Pelo contrário: houve uma política oficial, levada a cabo por algumas instâncias oficiais específicas, de incentivo à vinda de imigrantes europeus para a substituição da mão de obra negra na lavoura de café. Isto acabou por jogar o negro, que durante séculos nem visto como cidadão foi, às margens da sociedade. As políticas de reparação só foram começar a ser pensadas durante o governo Fernando Henrique Cardoso, e foram sistematizadas em grande escala apenas durante o governo Lula. Agora, estas políticas, que estavam levando o país a lentos avanços, sofrem com intenso questionamento e recrudescimento. O resultado deste gap são dados sociais alarmantes: esta reportagem do IBGE traz dados de pesquisas de 2016 e 2017; ela mostra que, por exemplo, em 2016, a taxa de analfabetismo entre pretos e pardos era de 9,9%, enquanto entre brancos era de 4,2% – mais que o dobro; em 2017, o rendimento médio entre brancos era de 2.814 reais, enquanto entre pretos era de 1.570 reais. Negros ocupam os mais baixos extratos sociais, estudam nas piores escolas, estão mais expostos à violência, têm os piores níveis de escolaridade.

P. Como as forças policiais agem especificamente com esta população, e, de que modo a sua gênese e estruturação está ligada ao racismo estrutural da sociedade brasileira?

F.H. Não creio que o problema seja as forças policiais especificamente, mas sim o racismo estrutural que está enraizado no Estado. Uma juíza, não há muito tempo, disse que um sujeito não tinha biotipo de bandido porque tinha olhos claros e cabelos lisos. Da mesma forma, um cara intelectualmente brilhante como o Joaquim Barbosa não passou na entrevista que compõe o processo seletivo para se ingressar no serviço diplomático brasileiro, porque, segundo ele mesmo disse mais de uma vez, viram que ele era negro. A escravidão negra foi uma política pública durante séculos no Brasil e o mesmo Estado se negou, durante muito, a adotar políticas de reparação – pelo contrário: tomou decisões e colaboraram para que o negro fosse ainda mais excluído dentro de nossa sociedade. As forças de segurança apenas são mais uma parte dentro desta que é uma tendência de todo o Estado brasileiro. A família alvejada por 80 tiros dentro de seu carro no Rio de Janeiro não foi vítima de um erro, eles foram vítimas, na verdade, da visão que o Estado e a sociedade brasileira têm de pessoas negras e periféricas. O conceito que o sociólogo canadense Erving Goffman desenvolveu sobre estigma pode ajudar muito para se entender a perspectiva que estou tentando passar aqui.

P. Quais são os projetos que buscam humanizar e reescrever tal história?

F.H. Desde sempre há, dentro da sociedade civil, negros e negras se organizando e lutando para humanizar, reescrever e valorizar nossa história, aqui no Brasil e lá fora: ativistas e intelectuais como Dandara e Zumbi dos Palmares, Maria Caolina de Jesus, Castro Alves, Luiz Gama, Abdias Nascimento, Djamila Ribeiro, Sueli Carneiro, Douglas Belchior, João Cândido e Carlos Marighella; artistas como Ruth Souza, Ismael Ivo, Zózima Bulbul, Cartola, Pixinguinha, Donga, Zezé Motta, Elisa Lucinda, ìcaro Silva, Martinho da Vila, Eduardo Silva, Gilberto Gil; esportistas como Reinaldo, o chamado “rei do mineirão”, que comemorava seus gols imitando o gesto dos Panteras Negras; acadêmicos como Kabengelê Munanga, Nei Lopes, Renato Nougueira, Lélia Gonzalez, Gislene Aparecida dos Santos, Silvio Almeida, Natália Néris, Sônia Guimarães; gerações inteiras de rappers como Mano Brown, Kl Jay, Hélião, Doctor X, MV Bill, Sabotagem, GOG;  gente do meio político como Alberto Caó, Benedita da Silva e Paulo Paim; movimentos, entidades e organizações como a Uneafro, a faculdade Zumbi dos Palmares, a Casa das Áfricas, o núcleo de Consciência Negra da USP, o Teatro Experimental Negro, o Ilê Ayê…

Dentro da esfera oficial, destacaria as leis 12.711/12, chamada lei de cotas, e a lei 10.639/03, que instituiu  o ensino obrigatório de história e cultura africana e afro-brasileira nos ensinos fundamental e médio, o Estatuto da Igualdade Racial e programas sociais como o Bolsa Família que, atingindo de forma positiva as parcelas mais pobres da sociedade, beneficiaram e muito a população negra.