Texto por Felipe Honorato

Na última semana, uma nova polêmica envolvendo repórteres da Globo e racismo surgiu nas redes sociais: Douglas Belchior, importante liderança do Movimento Negro e membro da Uniafro, reproduziu, em sua conta no Facebook,  um tweet de Guga Chacra, colunista do jornal O Globo, comentarista da Globo News e blogueiro do Estadão; a mensagem postada na plataforma de microtextos dizia “Um dos lugares mais fantásticos do Brasil é o interior de São Paulo. É o Brasil que deu certo. Vejam São José do Rio Preto, São José dos Campos, Campinas, Sorocaba. Isso para falar das grandes cidades, que foram construídas por imigrantes e bandeirantes”;  Belchior acusou o jornalista de estar fazendo “coisa de branco” –  em alusão à campanha feita na internet pela comunidade negra que emergiu do vídeo vazado de Wiliam Waack – e, tanto Guga Chacra, como outras muitas pessoas mostraram espanto ao saberem que o jornalista estava sendo acusado de racismo por ter elogiado o interior de São Paulo.

Dois pontos na postagem, e um na reação de Chacra são problemáticos e justificam o fato de eu, Douglas e todos os negros, paulistas ou não, termos ficado ofendidos com a colocação do jornalista. Em primeiro lugar, Chacra defende que as grandes cidades do interior de São Paulo foram construídas por imigrantes e bandeirantes. Isto é negar o protagonismo que negros e indígenas tiveram na construção não só do interior paulista, mas como de todo o país. Logo que li o Tweet do jornalista, alguns fatos me vieram à memória: a Catedral Metropolitana de Campinas, até hoje considerada o maior edifício do mundo construído usando a técnica da taipa de pilão, foi erguida por escravos, assim como a Igreja de Nossa Senhora da Candelária, Matriz de Itú, ambas no interior paulista; Araçatuba, Araraquara, Atibaia, Bauru, Botucatu, Guaratinguetá, Indaiatuba, Itapira, Jaguariúna, Jundiaí, Mogi-Mirim, Mogi-Guaçu, Piracicaba e a própria citada Sorocaba, cidades importantes do interior de São Paulo, tem todas nomes de origem indígena! Como dizer, então, que as grandes cidades do interior foram construídas apenas por imigrantes e bandeirantes?

Neste ponto, vale lembrar também de um fato que Sérgio Buarque de Holanda trouxe em seu livro “Raízes do Brasil”: tomando argumentos que Holanda credita a Teodoro Sampaio, ele defende que “entre paulistas do século XVII fosse corrente o uso da língua-geral, mais corrente, em verdade do que o próprio português”. Para quem desconhece, língua geral era uma língua que se originou da evolução histórica do tupi antigo – ou seja, era um idioma indígena. Arrisco, sem medo algum, a dizer que não houve, no sul e sudeste brasileiros, outra unidade federativa com tanta influência indígena como São Paulo. Negar ou negligenciar esta importante participação que os índios tiveram na construção deste estado não é nada menos do que inadmissível.

Houve, recentemente, na África do Sul, um movimento que demandou e conseguiu atingir o objetivo de retirar, do campus da Universidade da Cidade do Cabo, uma estátua de Cecil Rhodes. Rhodes, figura das mais importantes dentro do colonialismo britânico, era um ferrenho defensor da superioridade da raça branca ante as demais e é tido como um dos mentores do que, posteriormente, se tornaria o apartheid, um regime de segregação racial. Da mesma forma, houve nos Estados Unidos um movimento que reinvindicava a retirada de monumentos em memória a figuras ligadas aos Confederados, nome dado a coalizão formada por estados sulistas, defensores da manutenção da escravidão negra, durante a guerra civil estadunidense; o ex-presidente Barack Obama, por sua vez, aprovou a substituição, nas notas de dólares, da imagem de Andrew Jackson, outro ex-presidente estadunidense responsável por provocar enormes deslocamentos da população nativa e confiná-los em reservas indígenas, pela a de Harriet Tubman, ex-escrava que ajudou centenas de semelhantes a fugir para o norte da escravidão sulista, além de ter sido um ativista extremamente importante dentro dos movimentos abolicionista e sulfragista.

No Canadá, o primeiro ministro Justin Trudeau, não só, como publicou o El País em português, “instou o papa Francisco a visitar o Canadá para pedir desculpas aos povos originários pelo tratamento dado pela Igreja Católica às crianças indígenas nos internatos que dirigia nesse país no final do século XIX”, mas também pediu desculpas oficiais, em nome do Estado canadense, pela perseguição que o governo infringiu à comunidade LGBT durante a década de 1950. Podemos dizer, então, que há uma tendência de que Estados e instituições peçam desculpas por suas condutas preconceituosas passadas, bem como uma crescente indignação, por parte da sociedade civil, contra pessoas, instituições e símbolos ligados a práticas preconceituosas.

Eis aqui o segundo ponto preocupante da postagem de Guga Chacra: seu tweet vai exatamente contra esta tendência. Glorificar bandeirantes é elogiar homens que caçavam índios, estupravam mulheres e matavam sem pudor; excluir negros e índios da construção do “Brasil que deu certo” é, de certa forma, corroborar com as políticas que foram tocadas pelo Estado brasileiro na tentativa de embranquecer sua população, pautadas pelo racismo científico. Aí, alcanço o terceiro e último ponto que merece atenção no tweet de Chacra: como uma pessoa como ele, com o titulo de mestre por uma das mais prestigiosas universidades do mundo, pode achar que sua postagem foi normal e apenas “elogiou o interior paulista”? Que tipo de conhecimento estamos aprendendo e espalhando por aí sobre o Brasil e os brasileiros? Será que as “políticas de embranquecimento” ficaram lá, perdidas, nos tempos da imigração em massa, ou seguem, até hoje à pleno vapor, com roupagens novas?

Fica a reflexão.