Por Francisco Rio Doce [*]

Uma crise sem precedentes na história se instaurou nas universidades públicas e na área de Ciência, Tecnologia & Informação (CT&I) no Brasil. Precarização dos contratos de trabalho de funcionários e docentes, cortes massivos de bolsas de pesquisas, congelamento de concursos públicos, atrasos nos pagamentos de salários e benefícios aos servidores, e, falta de repasse das verbas de custeio para universidades consolidam um cenário caótico e nada animador para o Ensino Superior brasileiro. Um cenário de terra arrasada que, caso haja disposição política para ser revertido em tempo, ainda demorará décadas para estancar a sangria no setor, considerado estratégico para o desenvolvimento econômico, social e de educação e saúde do país. Inclusive, impactando andamento de pesquisas de urgência, como as relativas à Chikungunya e Zika.

No final do ano passado, 2016, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e outras cinco entidades representativas do setor de CT&I já se manifestavam contra a criação da fonte 900 na Lei Orçamentária Anual (LOA/2017), que previa a retirada de recursos da área de educação, sinalizando o resultado desastroso da medida para o Ensino Superior e para as áreas de CT&I. [1]  Em julho deste ano, em entrevista publicada no portal BBC, o presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC) e renomado físico brasileiro, o Prof. Luiz Davidovich, também expressou e engrossou o coro de descontentamento e horror da comunidade científica em relação ao corte de 44% no orçamento destinado à área, então anunciado pelo Governo Federal. [2]  Na entrevista, além de demonstrar seu temor frente ao crescimento do fenômeno da fuga de cérebros do Brasil, já que o país tende a ser menos atrativo para os pesquisadores nacionais, Davidovich enfatizou que:

“Em épocas de crise, eles [os países desenvolvidos] aumentam o investimento em pesquisa e desenvolvimento. A União Europeia chegou a um acordo pelo qual pretende destinar 3% do PIB a pesquisa e desenvolvimento (P&D) até 2020. Nos EUA, até o ano passado, se aplicava em torno de 2,7% do PIB em P&D. A China está com crescimento desacelerado, mas ao mesmo tempo está investindo mais em pesquisa. Em plena crise, o primeiro-ministro (Li Keqiang) anuncia que vai aumentar o investimento em pesquisa básica em 26%. […] O que isso significa? Esses países entendem que o investimento em pesquisa é a melhor maneira de sair da crise de forma sustentável. Contribui para aumentar o valor agregado de seus produtos e aumentar seu protagonismo.” [fonte: BBC]

Pouco menos de um mês após a publicação da entrevista de Davidovich, outro anúncio cataclísmico abateu a comunidade científica brasileira, abalando qualquer sentimento residual de esperança em relação ao futuro da CT&I no país. Na semana passada, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) – principal autarquia de fomento de pesquisas de mestrado e doutorado – anunciou que devido ao contingenciamento de verbas não haveria recursos para financiar bolsas até o final de agosto. [3] O estrondo foi grande. A comunidade científica em polvorosa se manifestou pela imprensa e redes sociais. O que levou o ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, Gilberto Kassab, a amenizar os ânimos, prometendo que as 100 mil bolsas de pesquisa financiadas pelo CNPq em todo país não serão descontinuadas.

Contudo, dias antes do estrondoso anúncio do contingenciamento de bolsas pela autarquia, a página da Associação Nacional de Pós-graduandos (ANPG) informava que, em 2017, a CNPq já estava pagando 45% menos bolsas de mestrado e doutorado quando comparado a 2015. Segundo dados coletados pela entidade junto ao órgão, em 2015 eram 18.209 bolsas de doutorado, enquanto que no presente ano são apenas 8.272 bolsas para a mesma modalidade. [4] No último dia 3, a Universidade Federal do Rio de Janeiro emitiu nota à comunidade acadêmica informando que a instituição pode “perder todas as bolsas vinculadas ao CNPq” até o final deste mês. [5] Outras instituições de Ensino Superior (IES) seguiram igual protocolo.

Cenário de crise é nacional e regional

            O cenário de terra arrasada e desolação para as universidades públicas e a área de CT&I no Brasil não é somente estrutural e político em âmbito nacional, mas também transcorre e, de maneira concomitante, é agravado, em esfera regional. Em alguns estados da Federação, a queda de braço entre as universidades públicas e os poderes Executivo e Legislativo locais vem se arrastando desde 2015. Ou mesmo antes. O exemplo mais emblemático é o da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). No entanto, casos tão graves quanto são verificados em outras Unidades da Federação.

Na segunda-feira última (31), o reitor da UERJ – uma das mais prestigiadas instituições de ensino superior do Brasil e da América Latina – anunciou que a instituição não voltará às aulas no início desse semestre letivo por tempo indeterminado. Em nota publicada à comunidade, Ruy Garcia Marques justificou a decisão:

“A Reitoria da Universidade do Estado do Rio de Janeiro […] vem informar que, a despeito das reiteradas manifestações públicas em relação às precárias condições de funcionamento da Universidade, não houve qualquer progresso das negociações com o governo do estado do Rio de Janeiro nas últimas semanas. As condições de manutenção da universidade degradam-se cada vez mais com o não pagamento das empresas terceirizadas, contratadas por meio de licitação pública: limpeza, vigilância e coleta de lixo estão restritas, além de o Restaurante Universitário permanecer fechado. Somam-se a isso os atrasos salariais dos servidores técnico-administrativos e docentes da universidade […] os atrasos no pagamento de diversas bolsas, de docentes e alunos, incluindo os cotistas, estes últimos especialmente punidos pela impossibilidade de deslocamento à universidade ou de condições mínimas para prover a própria subsistência. […] Atingimos um patamar insuportável que impede a universidade de bem exercer suas funções de ensino, pesquisa e extensão. Também o nosso Hospital Universitário Pedro Ernesto padece do mesmo problema e funciona com limitações quase impeditivas, diminuindo amplamente o atendimento à população.” [6]

A mais grave crise orçamentária enfrentada pela UERJ em toda a sua história se arrasta desde o ano passado, quando logo após o encerramento das Olimpíadas Rio 2016, o governador Luiz Fernando Pezão anunciou que as contas do Estado estavam no vermelho. De lá para cá, a população do Rio tem sido afetada com a constante interrupção de serviços públicos essenciais, como nas áreas de Segurança, Saúde e Educação. E servidores públicos, incluso docentes e funcionários da UERJ, vitimados com não pagamento de salários e benefícios, além de e cerceados de condições adequadas para o desenvolvimento das atividades de Ensino, Pesquisa e Extensão. [7]

Não distante dali, no vizinho Estado de Minas Gerais, outra IES demonstra andar igualmente mal das pernas. No portal da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), o Departamento Interdisciplinar de Ciências Básicas da Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas e Exatas (Facsae) publicou no mês passado edital de seleção para “professor voluntário” na área de Ciências Sociais. [8] Conforme artigo assinado pelo jornalista Murilo Basso, e, publicado na Gazeta do Povo (28/07/17), a prática de seleção de docentes voluntários tem sido comum em IES Brasil afora, como no Instituto Federal do Tocantins (IFTO), na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS) e na Faculdade de Medicina da Universidade de Brasília (UnB). [9] Indisponibilidade de recursos financeiros ou a falta de incentivo para abertura de concursos públicos e contratação de pessoal já afetam as atividades pedagógicas e científicas dessas IES, que se utilizam da Lei nº 9.608/1998 para cobrir pela via da precarização do trabalho docente a emergencial falta de recursos humanos.

No Estado do Paraná, IES estaduais e federais sofrem com esses e outros agravos. De autoria do Dep. Sérgio Souza (PMDB/PR), uma Medida Provisória, a MP 785/17, propôs recentemente a extinção da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), e, sua transformação em Universidade Federal do Oeste do Paraná (UFOPR). Criada em 2010 a fim de incentivar a integração e parcerias científicas e educacionais entre os países do Mercosul, a mudança ameaça a vocação integracionista da IES, que, por seu caráter plurilinguístico e localização estratégica (Tríplice Fronteira), atualmente recebe alunos e professores de uma gama variada estados do Brasil e de inúmeros países da América Latina.

No mesmo Paraná, outra dura resistência é travada pelas universidades estaduais de Maringá e de Londrina, respectivamente, a UEM e a UEL. O Tribunal de Contas do Estado (TCE-PR) decidiu por unanimidade no último dia (27) do mês passado reconhecer a Dedicação Exclusiva dos docentes como simples “gratificação”, e não como Regime de Trabalho. [10] O que ameaça seriamente o desenvolvimento de futuras pesquisas nessas universidades regionais de ponta, uma vez que diferente do trabalho em sala-de-aula, o campo investigativo exige estímulo à dedicação integral do docente-pesquisador.

A exemplo da UERJ no Rio de Janeiro, a UEM e a UEL também sofrem com o descumprimento do repasse integral de verbas de custeio por parte do Governo do Estado do Paraná. Situação que, recentemente, tornou-se ainda mais grave quando frente a resistência das comunidades acadêmicas ao ingresso no chamado sistema Meta-4, proposto pelo governo Beto Richa (PSDB/PR), e que retira a autonomia dessas universidades, o Estado resolveu bloquear as contas das duas IES. O caso veio a público graças a denúncia feita pelo reitor da UEM, Mauro Baesso.

Confira o vídeo!

UEM e UEL igualmente são afetadas pela morosidade do Estado do Paraná em relação à abertura de concursos públicos e efetivação de pessoal já concursado. O efeito disso é sentido não somente nas atividades de ensino e pesquisa dessas IES, como nos serviços que essas instituições prestam à comunidade externa. O portal de notícias Bonde, de Londrina, publicou que 25 dias após a reinauguração, que contou com a presença de Richa, o Cine Teatro Ouro Verde teve de fechar novamente as portas por falta de funcionários. [11] Administrado pela UEL, o Ouro Verde – um dos principais teatros do Paraná – passou por uma longa reforma após um incêndio ocorrido em 2012. O Museu Histórico da cidade, igualmente administrado pela universidade, pode ter em breve semelhante destino.  A IES, que aparece no ranking da QS University Rankings: Latin America 2016 como a melhor universidade estadual do Sul do país, passa por uma aguda dificuldade econômica que já comprometeu serviços como o de transporte e Restaurante Universitário. [12]

No Nordeste, a situação não é diferente. Entidades representativas da classe docente e dos servidores técnicos administrativos denunciam que o corte de recursos afeta as atividades da Universidade Federal do Sergipe (UFS) desde meados do ano passado. Além da questão da progressão salarial, a universidade corre o risco de interromper suas atividades já no início do próximo mês.

A arquitetura política da crise nas IES e C&T

            A crise em que estão mergulhadas as IES e a CT&I no Brasil abre espaço para questionamentos sobre o futuro da Educação e Ciência no país. Na ânsia pelo saneamento das contas públicas em tempos de efetiva crise econômica, a União e os Estados adotam uma postura no mínimo contraditória, tal como questionável. Por um lado, aliviam as responsabilidades de agentes econômicos e políticos – perdoando dívidas e dirimindo encargos – enquanto penalizam e colocam na berlinda setores reconhecidamente estratégicos para a retomada do crescimento econômico e para o futuro do país, como as IES e CT&I.

Desde o final de 2016, o Pressenza e o Quatro V vêm alertando sobre o caráter dessa prática de penalização da Ciência & Tecnologia na América Latina. Mostramos como – ainda que sentida em âmbitos nacional e regional – ela não pode ser compreendida como uma simples e isolada política de Estado, ou de unidades federativas e províncias. Trata-se, sobretudo, de um movimento que acompanha uma arquitetura política bem desenhada em toda a região, após o biênio 2014/15. Cujos exemplos mais acintosos foram dados pelos governos neoliberais de Michel Temer, no Brasil, com a aprovação da PEC 241, e, Maurício Macri, na Argentina, com o corte para 2017 de 60% dos investimentos no Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas (Conicet). Confira o vídeo:

O efeito imediato mais drástico dessa verdadeira arquitetura da destruição da Ciência e Tecnologia – especialmente, no Brasil – recai a curto e médio prazos não somente sobre o funcionalismo público e a comunidade científica, mas sobremaneira na população mais carente. Que depende exclusivamente dos serviços que as IES ofertam às comunidades locais. Entre os quais, atendimentos médicos e exames em hospitais universitários, nos serviços odontológicos e farmacêuticos, nas atividades de museus e centros culturais, etc. Num país em que serviços privados são caros, e não essencialmente bons, e, em que as universidades particulares estão “entre as piores da América Latina” [13], o impacto nas populações de baixa renda será enorme.

Por outro lado, condena-se o futuro científico e econômico do Brasil acelerando o ingresso do país na já consabida face da Nova Ordem de composição da Divisão Internacional do Trabalho. Isto é, na Divisão Internacional da Produção de Conhecimento. O desmonte das IES públicas, a precarização dos trabalhos docente e investigativo e a falta de incentivo público ao desenvolvimento acadêmico e tecnológico, cada vez mais lança o país a um mero reprodutor e importador de inovações e tecnologias. Incapacitado de pensar a si próprio e o Mundo no qual está inserido. Dilatando de maneira irremediável o fosso que o separa das nações desenvolvidas.

 

[*] Francisco Rio Doce é colaborador do Pressenza/PT-BR.

——————————————————————————————————————————-

Notas & Referências:

[1] A nota de protesto da SBPC pode ser lida na íntegra acessando o link: <http://portal.sbpcnet.org.br/noticias/entidades-divulgam-nota-de-protesto-contra-cortes-de-verbas-na-loa-2017/>

[2] Link para a entrevista do Prof. Luiz Davidovich na BBC: http://www.bbc.com/portuguese/brasil-40504128

[3] Confira o anúncio do CNPq no portal AgênciaBrasil: http://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2017-08/apos-corte-de-verbas-cnpq-tem-recursos-para-pagar-bolsas-apenas-ate-este

[4] Dados retirados de http://www.anpg.org.br/cnpq-paga-45-menos-bolsas-de-mestrado-e-doutorado-em-2017-comparado-com-2015/

[5] https://ufrj.br/noticia/2017/08/03/ufrj-pode-perder-todas-bolsas-vinculadas-ao-cnpq

[6] Leia a nota na íntegra: http://www.uerj.br/lendo_noticia.php?id=1238

[7] Por Extensão compreende-se toda e qualquer atividade ou serviço que a universidade desenvolve junto às comunidades acadêmica e externa. Como por exemplo, serviços odontológicos, ambulatoriais, psicossociais, museológicos, artísticos, etc.

[8] Acesse a publicação do edital em: http://www.ufvjm.edu.br/noticias/7162-2017-06-30-18-05-53.html?lang=pt_BR.utf8%2C+pt_BR.UT

[9] http://www.gazetadopovo.com.br/educacao/quem-quer-ser-professor-e-trabalhar-de-graca-em-um-instituto-federal-1iqzzs7uzh9t6ajzzfs3so5we

[10] Assista o vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=rVveY7AkiEg

[11] http://www.bonde.com.br/bondenews/londrina/apos-25-dias-da-reinauguracao-ouro-verde-fecha-novamente-as-portas-448342.html>

[12] Ranking QS Qality: https://www.topuniversities.com/qs-world-university-rankings

[13] Leia a matéria na íntegra: http://cartacampinas.com.br/2017/07/universidades-particulares-brasileiras-estao-entre-as-piores-da-america-latina/

 

 


#educação  #universidades #crisenasuniversidades #MaisInvestimentosMenosCortes #ConhecimentoéinvestirnoFuturo

#TamoJunto #ColanaFotoResistênciapelaEducação

#CONHECIMENTOSEMCORTES