por Vinícius B.C.

“Político quando candidato
Promete que dá aumento
E o povo vê que de fato
Aumenta o seu sofrimento” (CAROLINA)

Vera Eunice de Jesus Lima, professora e filha de Carolina – para a TVT – em 20 de novembro de 2014:
“Carolina Maria de Jesus que antes de mais nada foi a minha mãe. Foi uma pessoa pobre que nasceu em Sacramento. Uma pessoa que desde pequena foi rejeitada por ser muito inteligente. Lia muito. Aparentemente ela aprendeu a ler sozinha. Ela gostava muito de ir aos bailes, porém quando ia, ninguém dançava com ela. Sumiu 10 ou 20 cruzados do frei e colocaram a culpa nela. Ela foi presa, não acharam nada e colocaram a culpa na mãe dela, que foi presa. Acharam o dinheiro e soltaram ela, ela disse que não ficaria mais na cidade e foi para São Paulo. Ela chegou e começou a trabalhar para o doutor Zerbine. Ele disse para ela sair nos finais de semana. Ela disse que preferia ficar na biblioteca. Era muito namoradeira. Engravidou do meu irmão. O pai que é um marinheiro português. Ela não podia trabalhar em casa de família, por isso foi parar na rua. Ai, que ia chegar um político muito importante aqui em São Paulo. Ele pegou todos os pobres, jogou no caminhão e colocou naquela favela. Então se formou a favela do Canindé. Ela escrevia quando tinha paz. Passava fome mas não deixava de estudar. Ela tirava da boca para pagar reforço escolar para mim. Não tinha comida, mas tinha dinheiro da condução. Ela ia nas reuniões de escola. O maior sonho dela era que eu fosse professora, e hoje eu sou professora” (adaptado).

Vídeo produzido pelo Quatro V ilustra a grandiosidade dessa mulher

O presente artigo tem como objetivo estudar a obra de Carolina Maria de Jesus, “Quarto de Despejo: diário de uma favelada”. Para isso faremos uso do arcabouço teórico trazido por Zina Bernd em “Introdução à Literatura Negra”. Tentando traçar ligações entre a autora e essa classificação literária trazida por Bernd. Ligação que parece estar distante, como fora afirmado por José Carlos. Procuramos também entender as relações culturais presente na obra, pensando sempre no contexto diaspórico África-Brasil. Um dos diversos pontos que nos levam a pensar essa ligação é o fato do avô de Carolina ser descendente do povo Banto. Um grupo etnolinguístico localizado na África subsaariana. Pensar nos elementos da cultura oral africana (HampÂté bÂ) que Carolina teve acesso e buscando também na crítica clássica literária (Cândido) entender essa autora, sua obra e o meio social em que vivia.

Carolina conseguiu um grande sucesso, inclusive internacional chegando a ser traduzido para aproximadamente 14 línguas, com o seu livro “Quarto de despejo: Diário de uma Favelada”. Livro que obtivera a marca de ultrapassar as 10 mil tiragens na primeira edição, sucesso editorial inédito no Brasil. Apesar desse estrondoso sucesso, morrera no esquecimento em um pequeno sítio na região sul de São Paulo em um bairro conhecido como Parelheiros. Continuaria a produzir, porém paulatinamente vai entrando no esquecimento, seus últimos trabalhos seriam publicados com seu próprio dinheiro. Há manuscritos que não foram publicados e que estão guardados inclusive na biblioteca do Congresso Americano em Washington DC.

O texto de Carolina é marcado por profundas reflexões sobre a sua vida e sobre o mundo que a rodeia. Sobre a forma que mantém os seus filhos diz: “Os meus filhos não são sustentados com pão de igreja. Eu enfrento qualquer espécie de trabalho para mantê-los […] Não invejo as mulheres casadas da favela que levam vida de escravas indianas” (P.14 – CAROLINA). Tece críticas sobre a vida matrimonial, em sua narrativa é possível ver diversas cenas em que as mulheres da favela têm que sair nuas para as vielas para interromper os espancamentos que sofriam por parte de seus maridos.

A relação entre o autor, a sua obra e o meio social em que está inserido é importantíssimo para se realizar uma análise artística (CÂNDIDO). Assim, deve se pensar em cada dos eixos do tripé: autor-obra-sociedade. O meio social em que Carolina estava inserida era marcado pela fome, a extrema miséria, pelo racismo, a busca pela sobrevivência e o desespero de ter que sustentar os filhos sozinha, com inúmeros riscos. Na literatura a autora podia se desprender dessa realidade, em um queixotismo, os livros a levavam para uma outra realidade, onde ela não era meramente uma marginalizada, tinha voz.“[…] Esquentei comida. Li um pouco. Não sei dormir sem ler. Gosto de manusear um livro. O livro é a melhor invenção do homem.” (p.22- IDEM ). A autora busca “uma fuga” da favela. Quer demonstrar que não é somente uma catadora de materiais recicláveis.

À lá Luiz Gama, Carolina, denúncia o sofrimento do povo favelado, dos marginalizados. E que também não abaixava a cabeça, Carolina resiste bravamente contra todas as intempéries que a vida lhe traz. “[…] Miseráveis: ignoram que mais glorioso é morrer livre, em uma forca, ou dilacerado pelos cães na praça pública, do que banquetear-se com os Neros na escravidão” (GAMA) Sua obra é marcada pela crítica social e pela denúncia das mazelas sofridas, seu relato ao mesmo tempo que é único, do ponto de vista pessoal, traz a voz de muitas pessoas que tinham (tem) a mesma condição étinico-sócio-econômica que Carolina. “Mas os poetas do lixo, os idealistas das favelas, um espectador que assiste e observa as tradias que os políticos representam em relação ao povo” (p. 47)

(imagem da antiga favela do Canindé)

Carolina em seu texto que se distanciava dos padrões normativos de sua época, traz consigo uma independência textual, estilística. Sua obra fora devolvida por editoras, e suas tentativas de se colocar como escritora já eram longas.“O The Reader Digest devolvia os originais. A pior bofetada para quem escreve é a devolução de sua obra” (p.135) .

Para conseguir se colocar como escritora, essa mulher negra do século XX precisou de mediadores culturais. Fora preciso a atuação de um jornalista – Audálio Dantas – que fez a ponte entre a escritora e as editoras. Em nosso entendimento sem essa mediação, ainda seria extremamente difícil para Carolina ganhar alguma visibilidade e por sua vez ter o seu trabalho publicado. “Li o artigo e sorri. Pensei no repórter e pretendo agradecê-lo” (p.150- CAROLINA)

A presença deste jornalista foi imprescindível para que Carolina pudesse ser reconhecida como escritora, ainda assim a autora morreria na clandestinidade.
“Li o artigo e sorri. Pensei no repórter e pretendo agradecê-lo” (p.150)
Carolina via na escrita não apenas um meio de sair da favela, não apenas um modo de ganhar mais dinheiro, via uma forma de viver, a escrita simbolizava mais do que o dinheiro. Tanto que a escritora poderia ter optado por continuar uma linha de livros com os mesmos ingredientes do seu primeiro livro para garantir o sucesso editorial, de modo contrário, teceu críticas a este outro momento de sua vida e o que veio com ela, em seu livro “Quarto de Alvenaria” ela não obteve o mesmo sucesso que o anterior. Paulatinamente a escritora fora adentrando para o esquecimento.

Apesar de mudar para a zona norte, e ganhar mais dinheiro, ainda sofria um forte preconceito. Não se sabe ao certo as relações que esse esquecimento poderia ter com um cenário de ditadura militar e guerra fria. Sabemos que seus quatro livros publicados em vida foram impressos em um período anterior ao golpe, mas, em que medida o regime afetaria suas obras? Certamente são indagações que não cabem no objetivo do presente trabalho, mas que ficarão para reflexão.

Nos relatos de sua filha, nos quais iniciamos o presente artigo, é dito que os vizinhos não os queriam lá. Vemos que mais do que existência de classes sociais e distinções meramente econômicas, há variáveis supraeconômicas. Mesmo quando tinha certo dinheiro, Carolina sofria com o preconceito racial. Sua voz potencializa o sentimento dos marginalizados, seus relatos são extremamente provocativos e reverberam o que poucos poderiam escrever com tamanha maestria, deixam o leitor sem fôlego do começo ao fim. Uma pena que só nos foi dada a oportunidade de conhecê-la em um dado ambiente universitário. Em nossa visão, Carolina deveria ser lida nos ambientes escolares da educação básica, certamente daria maior visibilidade e representatividade para o povo negro.

“Não digam que fui rebotalho,
que vivi à margem da vida.
Digam que eu procurava trabalho,
mas fui sempre preterida.
Digam ao povo brasileiro
que meu sonho era ser escritora,
mas eu não tinha dinheiro
para pagar uma editora.”
(CAROLINA MARIA DE JESUS)

Bibliografia:
BERND, Zilá. Introdução à Literatura Negra.
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade.
CARLOS GOMES DA SILVA, José. Carolina Maria de Jesus e os discursos da negritude: Literatura Afro-brasileira, jornais negros e vozes marginalizadas. História e Perspectiva. Uberlândia. 2008.
GAMA, luiz. Trovas Burlesca de Getulíneo.
HAMPÂTÉ BÂ, Amadou. “A tradição viva”. In: KI-ZERBO, J (coord.) História Geral da África. I –Metodologia e Pré-história da África. São Paulo, Ática/UNESCO, 1982.
MARIA DE JESUS, Carolina. Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada.