Do Jornal GGN

O anedotário político brasileiro, movido a patrimonialismo, renova-se sempre. A mais nova história vem do sudoeste de Minas Gerais: em São Sebastião do Paraíso, após fraudar o SUS em R$ 5 milhões, dono de hospital se elege prefeito e instala o Hospital Municipal e a Secretaria de Saúde em prédio de sua propriedade, sujeitando a prefeitura ao pagamento de multa mensal de R$ 40 mil se o edifício não for entregue em boas condições. O contrato, assinado entre o prefeito Rêmolo Aloise (PSDB) e o proprietário Rêmolo Aloise (!) tem validade até dezembro de 2016, quando termina seu mandato.

A anedota paraisense se desdobra em três atos:

Primeiro ato: a Polícia Federal deflagra a Operação Torniquete em 19 de maio de 2006, com o cumprimento de oito mandados de prisão e de busca e apreensão de documentos. Constatou-se a falsificação de fichas de atendimentos e laudos de exames de modo a fazer o hospital receber recursos do SUS por serviços não-prestados. De acordo com o Ministério Público Federal, foram encontradas 107.876 fichas de atendimento ambulatorial e 1.958 laudos de ultrassonografia e mamografia falsificados. O valor exato da fraude chegou a R$ 4.947.338,92.

Como não poderia deixar de ser em uma boa anedota política, a tragédia do assalto aos cofres públicos se converte em comédia: entre as fichas falsificadas, foram encontradas situações como operações de fimose em mulheres, gravidez em homens, ultrassonografia do útero em homens e extração de dente de leite em idosos.

Descredenciado pelo SUS, o Hospital Sagrado Coração de Jesus encontrava-se fechado até março deste ano.

Segundo ato: apesar da repercussão do caso à época, Aloise deu a volta por cima. Elegeu-se prefeito em 2012.

Sua notória experiência na área (!) rendeu-lhe também a presidência do Consórcio Intermunicipal de Saúde do Sudoeste Mineiro, que reúne os municípios de São Sebastião do Paraíso, Itamoji, Jacuí, Pratápolis, São Tomás de Aquino, São João Batista do Glória e Bom Jesus da Penha. Eleito em janeiro de 2013 para o cargo, renunciou um mês antes do término do mandato, em novembro de 2014.

Em novembro de 2013, a Justiça Federal o condenou, em primeira instância, por improbidade administrativa decorrente da fraude no Hospital Sagrado Coração de Jesus. A sentença obriga o prefeito a ressarcir os R$ 5 milhões desviados do SUS e pagar multa equivalente a duas vezes a quantia desviada, acrescida de juros e correção monetária. Aloise também foi condenado à perda de qualquer função pública que esteja exercendo quando a sentença transitar em julgado. Ele recorreu e a ação tramita em segunda instância.

Terceiro ato: em 12 de março de 2015, o prefeito conseguiu a aprovação da Câmara Municipal, onde tem maioria, de projeto de lei para criação do hospital público. Para surpresa da população, no dia 16, uma segunda-feira, o antigo Hospital Sagrado Coração de Jesus, fechado desde a Operação Torniquete da Polícia Federal, abria suas portas e ostentava na fachada o letreiro onde se lia “Hospital Municipal”.

Rêmolo Aloise assinara um contrato de comodato consigo próprio. Não é figura de expressão: no documento consta sua assinatura duas vezes, como comodante e como comodatário. O contrato tem duração até dezembro de 2016, quando termina seu mandato de prefeito. E impõe ao município multa mensal de R$ 40 mil se as instalações não forem devolvidas em bom estado.

O prefeito deu ainda outra cartada para criar um fato consumado: transferiu a Secretaria Municipal de Saúde, com todos os seus equipamentos e servidores, para o mesmo prédio do hospital. O edifício onde funcionava a secretaria, um anexo da prefeitura, foi imediatamente destinado ao projeto Universidade Aberta do Brasil.

Em 10 de abril, o juiz da 2ª Vara Cível de São Sebastião do Paraíso, Marcos Antônio Hipólito Rodrigues, acatou pedido do Ministério Público e determinou o fechamento do hospital. Ficou comprovado que o contrato de comodato fora realizado sem prévia licitação ou procedimento similar.

Sobre a multa estipulada no contrato, comenta o juiz: “Ora, caso o chefe do Executivo, por alguma circunstância específica não devolva o imóvel no prazo assinalado no contrato, será ele próprio favorecido por multa que assumiu como responsabilidade do município? A confusão de interesses é evidente e chega às raias do absurdo.”

A decisão judicial também suspendeu a transferência de qualquer serviço ou bem público para o prédio do hospital e proibiu o uso de bens públicos já transferidos.

Como a Secretaria Municipal de Saúde foi instalada no local, a decisão praticamente paralisou o atendimento à população, impedindo, entre outras coisas, o agendamento de viagens para tratamento médico em outras cidades.

Em seus recursos ao Judiciário, a prefeitura usou como argumentos a paralisação do atendimento e a suposta impossibilidade de retornar ao prédio onde funcionava a secretaria antes da mudança. Aloise queria continuar usando seu próprio edifício. Mas o juiz não engoliu essa. Negou o pedido, autorizando apenas a retirada de equipamentos do hospital para retomada do atendimento à população em outro espaço.

Sem alternativa, no dia 20 de abril, a prefeitura transferiu os equipamentos da Secretaria da Saúde para a Arena Olímpica do município, um espaço projetado para práticas esportivas.

Em suas notas de esclarecimento, a prefeitura alega que o contrato de comodato é legal e benéfico à população, resultando em economia para o município. E que ainda não se tem decisão sobre o local onde será instalada a Secretaria da Saúde em definitivo.

Mas, até hoje, o prefeito não respondeu às seguintes questões fundamentais: 1. Como foi obtido alvará de funcionamento tão rapidamente? 2. Como se contratou equipe médica sem licitação? 3. Se o prefeito cedeu o uso do prédio ao município, como fica a situação quando ele deixar a prefeitura? 4. O Hospital tinha dívidas de IPTU, como reabri-lo sem pagá-la, funcionando para servir ao município? 5. Como viria o credenciamento do SUS? O processo do qual o hospital é objeto, tendo como proprietários os filhos do prefeito, não se estende à utilização do prédio?

Pano rápido.