Por Miguel Urbano Rodrigues*

Admiro Xenofonte desde a juventude. Nos anos do «período especial”, quando viajava para Cubaonde então residia, levava no bolso a Anábases, para reler no avião. A saga dos Dez Mil Gregos no regresso à pátria ajudava a compreender a resistência heróica do povo cubano.

Transcorridos muitos anos, com a vida útil a findar, reli nas últimas  semanas, com prazer, a Anábases e Ciropédia.

Xenofonte foi um escritor maravilhoso. Usou o talento e a imaginação para evocar acontecimentos ligados à História da humanidade.

Historiador e precursor do moderno jornalismo, a sua obra marcou sucessivas gerações durante séculos. Cícero, Júlio Cesar, Tácito, Adriano estudaram com atenção os seus livros.

A importância do legado de Xenofonte não significa que ele tenha respeitado a História ou relatado com um mínimo de fidelidade  acontecimentos que evoca. Deturpou, pelo contrário, conscientemente a vida e a personalidade de Ciro.

Dois mil anos antes de Maquiavel, Xenofonte esboçou num livro belíssimo o retrato do príncipe perfeito tal como o concebia. O persa Ciro foi o modelo que o inspirou no seu «romance político» no qual alguns historiadores identificam afinidades com a Republica de Platão.

Não creio que tenha sentido escrúpulos em inventar um herói inexistente, tomando como referencia o imperador aquemênida.

Pode-se argumentar que Heródoto na sua História esboçou do homem e do estadista persa um perfil incompatível com o forjado por Xenofonte. Mas naquela época os leitores de ambos não excederiam centenas  em cada geração.

Introduzida na Europa a Imprensa, foi o Ciro de Xenofonte que transmitiu às elites europeias a imagem do líder ideal na Antiguidade.

Em Pasárgada, frente ao túmulo de Ciro, numa visita inesquecível às ruínas da cidade por ele fundada, eu tinha na mão, recordo, a Ciropedia. Mas a minha meditação no local era tão enovelada que hoje sou incapaz de penetrar nesse labirinto.

Interrogo-me, por vezes, sobre a motivação de Xenofonte em deturpar a História real na Ciropedia, o que raramente fez em Anábases, onde os erros são sobretudo geográficos.

Logo no Capitulo III apresenta de Astiages, o rei medo, avô de Ciro o, retrato de um monarca sábio e bondoso que ama o neto e contribui positivamente para lhe formar o carácter. Inverte a realidade. Astíages, advertido por um mago de que Ciro viria a ser um grande rei, ordena ao mordomo, Hárpago, que o mate. O crime não se consumou porque Hárpago salvou o menino, entregando-o a um pastor que o criou. Ciro, aliás, combateu Astíages e conquistou a Média.

Xenofonte inventa também uma cronologia das campanhas de Ciro que falsifica a História. Atribui-lhe (e aos persas) um papel decisivo na guerra contra a Assíria. Ora Ciro nasceu meio século depois da destruição do império assírio pelo babilônio Nabucodonosor, aliado aos Medos.

Xenofonte não ignorava o fato. Mas reescreve a História, para a falsificar. Apresenta a campanha contra Creso, rei da Lídia, como consequência da derrota dos assírios. Situa também fora da data real a conquista da Babilônia.

Porquê? Mente conscientemente. Com que objetivo?

Na Ciropedia, o Rei dos Reis teria conquistado Chipre.

Porquê essa inverdade se ele nunca esteve sequer em Chipre?

Igualmente inesperadas são todas as referências de caráter religioso. Os deuses invocados por Ciro são sempre os gregos.

Porquê tamanho absurdo?

Ciro, segundo Xenofonte, sacrifica a Zeus, a Héracles, a toda uma panóplia de divindades do panteão helênico.

Porquê? Ciro era tolerante. Respeitou a religião dos povos conquistados. Sabe-se que sacrificou a Marduk em Babilônia. Mas o deus supremo dos persas era Ahura Mazda. Na Ciropedia não há contudo referências a ele nem a Mitra ou Anahita, deuses menores do  mazdeísmo que evoluía para o monoteísmo.

Xenofonte  não foi, porém,  exceção. Ésquilo, numa das suas obras,  transforma  Dario I num devoto de Zeus . Heródoto,  nas páginas que dedica à retirada da Grécia após a derrota de Salamina, cita Zeus como se fora deus dos persas . Tucídides  também deformou  as práticas religiosas dos persas. As crenças e os  rituais do mazdeísmo eram muitíssimo diferentes dos comuns na Grécia . Não havia pontes entre a religião dos persas e a dos helenos.

Conclusão: os clássicos gregos «traduziram» os nomes dos deuses persas, procurando equivalências, agredindo a história das religiões.


* Colaborador de Diálogos do Sul, de Lisboa, Portugal.

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