Em novembro de 2015 em São Paulo deu-se o encontro da enfermeira obstetra Vilma Nishi e Hugo Novotny para uma conversa sobre o sentido da vida e do nascimento.

Transcrição e Edição por Flavia Estevan

Vilma tem 40 anos de experiência na área de Saúde Materno Infantil, atuou em diversos hospitais de São Paulo, tanto na rede pública quanto privada e trabalhou de 2000 a 2009 no ambulatório da Associação Comunitária Monte Azul. Tem formação em antroposofia e acompanha de maneira integral o pré natal, parto e pós parto de centenas de mulheres, tanto em hospitais quanto em casa, sendo essa sua principal atividade até os dias atuais. É frequentemente convidada para dar palestras e workshops por ser uma referência no trabalho da enfermagem obstétrica em uma visão integral do cuidado no Brasil.

Hugo Novotny é investigador do Parque de Estudo e Reflexão Carcarañá na Argentina. Humanista. Membro da Comunidade da Mensagem de Silo. Escritor e tradutor russo-espanhol. Membro da Escola de Tradutores de Silo, participou e impulsionou a tradução da edição e difusão da obra de Silo na Russia, Mongólia e China. Alterna sua residência entre Argentina e Rússia. Alguns de seus trabalhos mais conhecidos: A entrada ao Profundo em Buda; A consciência inspirada no chamanismo siberiano-mongol e no budismo tibetano e A entrada ao Profundo em Lao-Tsé. E-mail: hugonov@gmail.com

Hugo: Quando você decidiu começar com os partos?

Vilma: Eu já nasci curiosa, desde pequena. Eu sempre conto que quando eu tinha 10, 11 anos eu dizia que queria ser médica. Minha cidade era pequena, tinha 10 mil habitantes na época, e um dia apareceu um médico que era muito ruim, não tinha jeito para ser cuidador. Eu olhava pra ele e pensava: -Não vou mais fazer medicina, não quero parecer com ele. Mais para frente eu decidi que queria fazer enfermagem. Na época já tinha o projeto Rondon que levava os estudantes para o Xingu para cuidar dos índios. Daí decidi que queria fazer isso, que faria faculdade e iria com os índios, mesmo nunca tendo visto uma enfermeira. Terminei o colégio e vim fazer faculdade em São Paulo. Mas o que me encantou foi quando examinei uma mulher grávida pela primeira vez, eu olhei aquela barriga e vi o centro reto e eu disse: -Agora entendi para que serve o umbigo! (risos) Estava reto, não tinha mais umbigo, e eu sempre me perguntava para que servia o umbigo…daí entendi. Naquela época as mulheres não andavam com roupa justa, andavam com roupa solta, guardavam a barriga, eu nunca tinha visto uma barriga gravida. Então, quando vi, foi um encantamento.

Na faculdade, acompanhando as mulheres, vendo os partos, daí foi encantamento total, percebi o que era vir um ser ao mundo, isso foi em 1976. Após a faculdade entrei em um hospital público, através de um concurso com muitos candidatos e poucas vagas. Eu ainda faria a especialização em obstetrícia, então eu escolhi UTI, porque eu pensava que ficaria na obstetrícia o resto da vida, então queria aproveitar antes da especialização para estar na UTI, mas a chefe não me deixou, me mandou ir direto para Obstetrícia.

Outro dia foi a consagração disso, após o parto de uma cliente que tem 32 anos, ela me disse depois que o bebê nasceu: -Acho que você estava no meu parto, quando eu nasci. Minha mãe disse que no hospital do Servidor Público tinha uma enfermeira, de nome Vilma, japonesa, novinha e baixinha….eu disse: -Nossa, era eu mesmo! Eu a ajudei a nascer e agora a ajudei a parir. E se a mãe dela lembrou de mim é porque algo marcou.

Quase 40 anos que estou nesse caminho e ainda consigo sentir que estou no caminho certo, (risos). Quase virando o caminho e sinto que estou no caminho certo!

Hugo: Como é que “eles” vem ao mundo? Não somos nós que trazemos, certo? “Eles” vem, querem vir, querem sair e…?

Vilma: Sim, querem vir. E como eles querem vir, temos que receber bem. Esses seres querem vir e temos que receber bem. E se a mulher é bem cuidada ela vai receber bem, se ela for mal tratada ela vai ficar com raiva e cobrar do filho que sofreu muito para tê-lo, não é assim? Temos que cuidar muito bem da mulher para que ela consiga receber bem o filho.

Outro dia fui dar uma palestra em um hospital e perguntei: -Quem aqui nasceu de mãe? Foi um susto geral, todos se olharam e me perguntaram se alguém não nasce de mãe. Tem gente que às vezes eu acho que não nasceu de mãe, nasceu de chocadeira. Temos que respeitar muito as mães, temos que respeitar as mulheres, a referência da nossa vida são as mães, os pais. Hoje existem pessoas que estudam muito, acham que sabem muito e desprezam a origem, e desprezam as mães. Precisamos valorizar de onde viemos, senão ninguém olha para ninguém.

Eu sempre digo que o processo de parto não é para qualquer um, é para mulher. E a mulher precisa viver esse processo para trilhar esse caminho de virar mãe. Se ela vive bem esse lugar ela recebe bem o filho. Meu trabalho no pré natal tento trabalhar bastante esse lugar da mulher-filha que vai virar mãe. Para saber bem de onde ela vem e como que ela vai trazer o filho ao mundo. Isso tem sido muito bom.

Outro dia fui dar uma aula em uma escola particular, e percebi que hoje as pessoas trabalham muito para pagar uma escola boa para os filhos, mas quase não vivem com os filhos, só trabalham. Então essa é uma nova meta minha, cuidar dos pais para que eles vejam os filhos, não só o parto.

Hugo: Existe uma mudança de sensibilidade nas pessoas de buscar um parto mais natural, mais humano, não tão tecnológico, tão serial, tão frio? Existe uma busca mais forte nesse sentido?

Vilma: Sim, tem um movimento acontecendo. Também tem muita gente de repente vendo que é bonito um parto natural sem perceber muito bem qual é o processo, mas vale a pena mudar. Entrou em uma coisa muito mecânica aqui no Brasil e o consumismo impera, as pessoas perguntam por que o Brasil é campeão de cesariana, e eu respondo que também é campeão de cirurgia plástica, campeão de cirurgia bariátrica, ninguém, vive processo nenhum. A pessoa precisa cortar metade do estômago para começar a comer de pouquinho em pouquinho…por que não fez isso antes?

Hugo: Viver o processo, que interessante essa ideia.

Vilma: temos que viver os processos de tudo na vida. Se pular etapas da vida fica um buraco.

Hugo: Sobre essa dialética, essa confrontação de pontos de vista que diz que o natural é perigoso e se existe a ciência e a tecnologia, por que negá-la? Eu penso que é importante conseguir integrar tudo isso, não?

Vilma: Isso, não é negar a tecnologia, podem trabalhar juntos. Hoje o ultrassom, exames de laboratório em uma gravidez são muito importantes. Há 30 anos, as mulheres pobres não tinham acompanhamento pré natal, morria-se mais no parto, porque o pré natal não era bem cuidado, não se faziam exames. Cuidar desse lugar, desse estado grávido e viver bem, juntando a tecnologia com o simples e natural eu vejo que esse é o caminho. Desde que o mundo é mundo se faz nenê do mesmo jeito, então dá pra nascer também do mesmo jeito e com a ajuda da tecnologia fica tudo mais tranquilo. Eu atendo parto em casa e hoje uma cliente que está grávida me disse que o cunhado dela é médico e disse que em 2015 ter um parto em casa é um retrocesso, que ela está retrocedendo a história. Eu falei: -Pergunta pra ele como ele faz nenê…(risos). Não é retrocesso, é um progresso humano. Usa-se tecnologia e dá pra ter um caminho melhor.

A organização mundial de saúde fala de humanização do parto, eu penso que é tornar humano, tanto o profissional que atende esse partos quanto tratar a mulher, o bebê e a família como humanos. Desumanizou-se o lugar dessa mulher que pare, que trás esse filho ao mundo. Temos que olhar também esse ser que está chegando e que vamos receber, que é humano.

Hugo: Perdeu-se a sacralidade, o sentido do sagrado que é a vida para a mulher ou para as pessoas sobre o processo de nascer, de dar a luz?

Vilma: Eu vejo que isso está sendo resgatado, está voltando, tem um movimento das mulheres que estão entendendo o sentido de receber bem, de viver bem a gravidez, ter um parto melhor cuidado. Eu atendo muitas mulheres, que depois que tem um parto em casa, por exemplo, param de trabalhar. Hoje se trabalha para pagar escola, para todo um consumismo.Tem uma mulher que teve um primeiro parto cesárea e no segundo ela teve um parto natural no hospital, muito bonito e ela percebeu que o processo é dela, não é meu. Eu não faço milagre, é ela que vive isso. Antes de ir ao hospital eu cheguei na casa dela, disse que ela estava muito dura, muito tensa e que ela precisava acreditar na força dela, nesse processo e parir aquele filho. Daí eu avisei que sairia um pouco e eles começaram a cantar e fazer movimentos corporais. Quando voltei era outra mulher, examinei e o bebê já estava quase nascendo e fomos para o hospital. Agora ela engravidou novamente do terceiro filho e levou um susto, porque a bebê está com 1 ano apenas. Ela me disse que essa bebê tinha feito toda uma mudança na vida dela e eu disse que não foi a bebê, foi ela que fez e por isso a bebê veio tão bem. Agora ela quer um parto em casa, mudou de casa e está tendo uma vida mais simples, parou de trabalhar para criar os filhos, estão morando em uma casa menor para poder ter esse cuidado com os filhos. Tem muita gente vivendo isso, assim como outros pagam para que outros se encarreguem de educar seus filhos.

Hugo: Perguntava isso, porque na outra ponta da vida, na morte, vejo que existe uma carga muito forte, tudo está muito mais preparado, existem cerimonias, o significado está muito mais valorizado pela sociedade, e cada religião tem cerimonias, e o nascimento é parecido, não? De aqui se vai e para cá se vem. Talvez falte um pouco mais de valorização sobre a sacralidade do nascimento, não existem cerimonias para receber.

Vilma: Sim! É a celebração do nascimento, tem que ter! Esse lugar ainda falta.

No Brasil, por exemplo, não se pode celebrar a morte, morte tem que ser muito triste. Só tem velório e enterro, não se fala mais nisso, é um tabu. A cidade que nasci e cresci era uma comunidade japonesa que no 49º dia após a morte, depois da cerimonia religiosa oferece-se aos presentes como agradecimento, uma refeição com comidas como se fosse uma festa.Quando os japoneses chegaram com esses costumes, os brasileiros ficavam chocados, vendo as festas, aqui da morte ninguém fala.

Hugo: Deveríamos então celebrar mais o nascimento?

Vilma: Eu atendo muitos partos de estrangeiras, e sempre vejo uma celebração a mais, um enfeite, a casa enfeitada no dia seguinte após o parto. Aqui no Brasil não se faz, no máximo levam o enfeite de porta comprado para a maternidade, raramente alguém faz algo. Hoje não se faz nem uma roupa para receber o bebê, vai na loja e compra tudo. Antigamente existia esse hábito de fazer coisas enquanto se esperava o bebê, hoje ninguém faz nada, compra tudo pronto e quem pode vai para os Estados Unidos comprar as roupas.

Hugo: Imagino que isso seja nas classes mais privilegiadas…

Vilma: Não. Eu trabalhei 9 anos em uma favela, e o costume de comprar é tão grande, que até na favela onde as mulheres não tinham dinheiro, arrumavam dinheiro para fazer um ultrassom para saber o sexo do bebê e poder comprar o enxoval rosa ou azul. Não tinham dinheiro nem para comer, mas era importante comprar alguma coisa rosa ou azul.

Hugo: Como se pode fazer para aumentar essa consciência?

Vilma: Eu acho que a chave está na simplicidade da vida. Por isso quero ir nas escolas dar palestras e conversar. Entrar em uma coisa mais simples, sair desse consumismo. Os pais trabalham para comprar coisas para os filhos e depois cobram do filho tudo o que eles fazem. Reverter isso é pela simplicidade.

Hugo: Eu tenho a sensação de que por algo cada um de nós vem ao mundo, por algo quer vir o novo ser, algo vem fazer, vem com alguma missão, vocação, algo para desenvolver.

Vilma: Sim, e se você não sai do seu caminho consegue ser um Ser melhor.

Hugo: Quando a pessoa não toma consciência de que é isso, simplesmente vive sem nenhum sentido, vive de acordo com o que oferece a sociedade, trabalha, recebe salário, compra, viaja e como se a vida fosse só esse consumo permanente, mas sem nenhum sentido. Parece que talvez a valorização da vida, do sentido da vida, tenha muito que ver com a valorização do sentido do nascimento.

Vilma: Sim, é assim. A criança que mama no peito, por exemplo, cria força de vontade com a vida. Para mamar o bebê precisa fazer muita força. Quando o bebê tem a primeira sucção e entra o leite (colostro) pela boca, ele chega na terra. A mulher tem que entrar em um lugar de devoção, de reverência ao bebê e precisa se entregar. Hoje é comum na amamentação as mulheres terem dificuldade de se doarem e terem devoção, de ter um ser que depende delas 24 horas por dia. Existem também mulheres que demoram para perceber que viraram mãe. Acho que ainda vai demorar algumas gerações, mas está mudando. Precisamos voltar para simplicidade.

Hugo: Que bom isso que você fala das palestras e escolas, seguramente toda sua experiência vai ajudar muito.

Vilma: Eu sempre digo que estou com quase 62 anos muito bem vividos e tenho direito e dever de me meter na vida dos outros. (risos)

Outro dia perguntei em uma palestra qual era o dia mais belo da vida de cada um. As respostas eram, o dia do casamento, o nascimento dos filhos, etc. Eu disse: -Não! O dia mais belo é hoje! Porque todo mundo vive o passado ou o futuro? Temos que viver o hoje.

Ontem fui atender uma médica que estava ansiosa porque não tinha entrado em trabalho de parto, mesmo eu já tendo avisado que é normal passar um pouco da data prevista. Eu fiz massagem, fiz um trabalho de reorganização e harmonização do corpo, conversei e depois de tudo isso o marido me pergunta quando eu achava que nasceria. Depois de acalmar ela, vem ele ansioso e me pergunta isso… Eu respondi: -Não sei, só tenho certeza de que não vai nascer ontem. (risos)

Agora pouco me liga outra moça, contando que está com febre e eu disse que eu também estava. Ela disse que me liga porque eu sou a única pessoa que a deixo calma e eu respondi: -Ótimo, então fique calma!(risos) A vida é simples.

Hugo: Você ajuda nessas experiências que mudam a vida das pessoas, certo? Com a sua experiência você ajuda outros a passarem as suas experiências, não são teorias, são experiências.

Vilma: Sim, e em tudo isso o que me acompanha é uma alegria de vida. Eu falo que muito do que faço é por intuição, não por teorias. As pessoas me dizem que preciso fazer mestrado, doutorado, escrever livros, mas eu gosto da vida, de fazer as coisas.

Não adianta brigar com essa questão do excesso de cesáreas, precisamos juntar as mulheres mais velhas que são mães e são avós, para serem valorizadas pois são elas que trouxeram essas mulheres que estão parindo agora. Porque se não, as mulheres que estão parindo agora não tem raízes, não tem referência de histórias. Muitas vezes, aqui no consultório, quando as mulheres começam a sentir medo, duvidar se são capazes de parir, eu sugiro conversar com as mães e com a avós. Muitas mulheres julgam que as mães e avós não sabem nada, desprezam, não reconhecem que elas sabem muito.
Uma mulher me disse que o processo de gestação era muito inteligente. Não se trata de inteligência, nem cabe esse termo. A palavra correta é sagrado.
Hoje existe uma confusão muito grande de papéis, uma falta de respeito muito grande entre as pessoas e das pessoas com as coisas. As vezes me pergunto que tristeza é essa? Essa falta de preocupação com o outro…

Hugo: Sim, falta de sentido, sem dúvida, isso faz parte de uma crise profunda, de uma falta de sentido verdadeiro na vida.

Vilma: e faz o que com isso?

Hugo: Acredito que justamente estamos todos tratando de encontrar a forma juntos, pela vida mesma, pela morte, pelo nascimento, por distintos lados ir encarando esses temas para ver como encontramos o sentido dentro de nós. Acho que as perguntas de “para que vim ao mundo?”, “qual é a minha missão?”, “quem sou?”, “onde vou?”…são muito importantes…é necessário um pouco de reflexão e tomada de consciência.

E existem muitas coisas que estão caindo porque não servem, vamos tomando consciência do que já não tem jeito. Parece que vai surgindo uma nova sociedade, um novo ser humano. Por isso me parece que com a experiência que cada um tem, precisa ir compartilhando o que sentimos que ainda serve e o que sentimos que já não serve mais. Quando alguém descobre o sentido do nascimento de uma pessoa para ela e para a vida dos pais e do seu entorno é muito importante, vejo que estes são temas que precisam ser conversados, é importante.

Hugo: Querida Vilma, grato! Grato de coração por compartilhar sua experiência e sabedoria conosco. Os melhores desejos para você, sua mãe e todo o bom que você está fazendo para tantas pessoas.

Vilma: Eu que agradeço a conversa!

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