Por Alexandre Haubrich publicada no Jornalismo B
Aos 53 anos e trabalhando na área de tecnologia da informação desde os 16, Marcelo Branco é um dos mais respeitados pensadores – e ativistas – das redes sociais digitais e de seus usos políticos. Acompanhou de perto a virada do que eram os sistemas analógicos para a digitalização e, militante petista, com a ascensão da luta pelo Software Livre passou a misturar o trabalho profissional com o ativismo político. Organizou os primeiros Campus Party no Brasil, e, em 2010, coordenou a campanha presidencial de Dilma Rousseff (PT) nas redes sociais. Diz estar curioso com os movimentos sociais de novos formatos, desafiado por compreender o que há de comum entre as mobilizações que ocorreram no mundo árabe, na Espanha, em Wall Street, no México e no Brasil, “que nascem na internet, se encubam na internet, se fortalecem nas ruas, se alimentam nas redes e, em algum momento, viralizam como um viral de internet, e a revolta generaliza”. É a partir daí que começa a entrevista que concedeu ao Jornalismo B:

Se colocam assim potencialidades e limitações desse tipo de movimento. No Brasil, por exemplo, explodiu rápido e também recuou rápido. Isso é um pouco característico da própria internet?

Esses movimentos só foram possíveis porque existe a internet, no mundo inteiro, todos eles. Se não tivesse a internet, isso não teria acontecido. Segundo: a força dos movimentos mais organizados – Movimento Passe Livre, Bloco de Lutas, Mídia Ninja –, que são grupos organizados ativos, que tiveram um papel bastante importante no Brasil, ela não é o único fator que determinou aquela explosão, falando no nosso campo, o campo popular de esquerda. Há um elemento, ainda, que fez essa explosão acontecer em todos os lugares, que dá para dizer que é espontâneo. Esses movimentos originais, que iniciaram os protestos no Brasil, isso foi além deles. A internet viralizou uma indignação. Pós manifestações de Junho, pós revolta dos indignados na Espanha, as mesmas forças políticas, inclusive com mais aliados políticos, tentaram fazer algo igual, e tiveram uma força nas redes igual ou maior, e essas revoltas não aconteceram. São movimentos que nascem encubados na rede, saem para as ruas, e se realimentam. E mesmo que se tente organizar de novo, em outro momento, isso não tem acontecido. Então acho que a potencialidade desses movimentos é a força política que eles têm. Desde Seattle, em 1999, se observa que quem tem levado pessoas para as ruas não eram os partidos, não eram os sindicatos, não eram as organizações tradicionais, que enfrentam uma crise de representação das suas bases sociais. E quem tem levado as pessoas para as ruas têm sido pequenos grupos, pequenas organizações, ou os indivíduos conectados em rede em torno de uma ideia.

Essas organizações, partidos, movimentos populares tradicionais, sindicatos, não têm compreendido o papel da internet?

Acho que são duas coisas. Sim, é verdade que elas não têm compreendido o papel da internet. Até junho do ano passado, pelo menos, viam tudo isso com muito ceticismo, e até crítico e preconceituoso com relação às novas formas, à internet. Mas acho que também não é só uma questão de programa, é uma questão estrutural. Esse tipo de organização hierárquica, que são os partidos, as associações, os sindicatos, que representam seus filiados, seus sindicalizados perante a sociedade, a estrutura é da Era Industrial, uma organização fruto da Revolução Industrial e aquela organização social era a forma com que os movimentos viam, ter uma representação política que era a única possível. Porque individualmente ninguém tinha a possibilidade de colocar uma ideia e essa ideia se transformar em uma revolta, enfim. Então a forma encontrada, típica da Era Industrial, foi essas organizações, que continuam sendo muito importantes nas lutas, mas cada vez perdendo mais o seu peso. São organizações hierárquicas e verticais. Tiram as suas formas de luta em uma assembleia geral ou em uma convenção partidária, e aquelas reivindicações ou aquela plataforma política passa a ser apresentada por aquela sigla ou por aquela entidade que representa os seus filiados. Os movimentos sociais em rede são de estrutura totalmente diferente. Não há um intermediário. São indivíduos conectados em rede fazendo grandes ações em massa, é isso o que a gente têm observado desde 2011. E o que une as pessoas são as ideias. Inclusive as faixas na Espanha diziam assim: “o que nos une são as ideias”.

Ainda que organizações políticas componham esses movimentos, não são tão relevantes…

Na Espanha foram totalmente irrelevantes. No Brasil, menos, porque aqui teve a força do Bloco de Lutas, teve a força do Movimento Passe Livre de São Paulo, e na internet uma força muito grande da Mídia Ninja – e de vários outros coletivos, mas, pela leitura que a gente teve dos gráficos da rede, a Mídia Ninja teve um papel importante nesse processo. E depois não teve… Nem dá pra dizer que Junho no Brasil foi um movimento. Na Espanha eles dizem: “somos do movimento 15M”. No Brasil não, aqui foram os movimentos. Eu não acho que os movimentos históricos que resistiram ao neoliberalismo no Brasil, impediram a Alca e, nessa luta, elegeram o Lula e sustentaram esse projeto político até hoje, são movimentos que já eram. Não, eles têm um papel muito importante. Agora, são movimentos distintos desses movimentos em rede. E podem em alguns momentos estar aliados, mas podem em outros momentos estar em contradições. Só que nunca os partidos, os sindicatos e as associações vão ser movimentos em rede, com estruturas horizontais. Pode até mudar o programa do PT, do PSOL, do PSTU, reformar e fazer um programa mais moderno, que tenha uma política de comunicação nas redes sociais do que têm hoje, que é muito ruim…mas vão ser movimentos hierárquicos, típicos da Era Industrial, da Revolução Industrial. E esses novos movimentos que a gente têm visto não são movimentos típicos da Era Industrial. São novidades, porque não têm intermediário. Como a indústria da música sofre até hoje o fim do intermediário na música, como a comunicação está nessa do intermediário, que era o veículo, era o jornalista, e agora todo mundo faz comunicação sem o intermediário. A internet veio para bagunçar o coreto do intermediário: ou ele se redescobre nesse novo cenário ou ele morre, porque o cenário não é o mesmo que era há 15, 20 anos atrás. Existe uma nova dinâmica social e os protagonistas são outros, são os nativos digitais, que nasceram com a internet na mão. E a lógica do pensamento digital é diferente da lógica analógica do período anterior. Enfim, os partidos e sindicatos ainda têm o seu papel. Perderam o monopólio da representação, dos movimentos sociais, e têm sido menos capazes de produzir ações de massa do que essas novas formas de organização.

Por que a comunicação deles é ruim?

É muito a influência dos jornalistas, dos assessores de imprensa. Fazem uma comunicação broadcasting, como a comunicação de massa funciona: transmite uma ideia, um conteúdo, bota ali e transmite, isso vai atingir centenas, ou milhares ou milhões. Os partidos agem assim, passam o dia inteiro botando banner com propaganda do partido, o que o partido acha certo, o que o partido acha errado…e usa o Facebook e Twitter, mas não faz autocomunicação. As campanhas eleitorais sofreram desse mal também. A forma de conexão típica das redes sociais é uma autocomunicação de massas, não é uma comunicação mass media, uma comunicação broadcasting. Então o sucesso da tua comunicação vai depender muito do quanto mais ela engajou o público na construção da tua notícia, na construção do teu conteúdo, no comentário, na publicação de novos fatos em relação àquele conteúdo publicado originalmente. Então é isso o que funciona. Se a gente ver o que for o gráfico de radiografia das redes nessas eleições, com dois blocos que não se falavam entre si e não falavam com mais ninguém nas redes, e o que foi a comunicação em Junho no Brasil. Não tinha um núcleo forte que espalhava a notícia, e aquele conteúdo era disseminado. Eram milhares, milhões de pessoas gerando conteúdo, sem falar entre si, mas com o mesmo sentido. Então havia diálogo, comunicação, entre aqueles atores daquele movimento, gerando conteúdo próprio. O diálogo, o engajamento…o próprio mercado usa esse termo: nas redes sociais tem que ter engajamento do consumidor na tua marca, se não não prospera. Os próprios monopólios (de mídia) aqui do Sul, “mande sua foto, mande seu conteúdo, comente, leitor ativo…”.

Eles estão entendendo…

Sim, eles estão entendendo. Eles estão em busca, correndo, e avançando mais do que a esquerda. A esquerda sempre teve preconceito em relação a essas novas formas, e eu acho que é natural, pela estrutura de poder que se constituiu na esquerda, nos partidos políticos, nos movimentos e no Estado. É onde está mais atrasado as novas formas. No mundo inteiro, não só no Brasil. Os partidos e os Estados não se abrem para novas formas de participação via internet. Porque têm um poder político estabelecido a partir da lógica anterior, e esse novo cenário é perda de poder. Imagina, o PT se funcionasse de forma horizontal, colaborativa…o papel de um presidente, é perda de poder. A executiva nacional não teria o poder que tem hoje. Então é uma forma de se manter estruturalmente no poder, o dirigente sindical, o líder estudantil…a internet atrapalha essa ambição de poder, essa disputa vertical de poder que existe nas instituições. Se isso é positivo para a construção de uma democracia, eu não sei, mas o período anterior não existe mais, e nós temos que repensar como construir um aperfeiçoamento da democracia representativa. Nós lutamos, e vários antepassados nossos deram suas vidas para construir essa democracia que nós temos hoje no Brasil, mas ela não nos representa mais. Não dá para acharmos que isso aqui é uma democracia. Existem hoje novas possibilidades de aperfeiçoar a democracia com participação direta. Com mais participação e tomada de decisão por parte da população nas políticas públicas do que era há 15 ou 20 anos. Só que essas plataformas não são incorporadas pelos Estados democráticos, republicanos. Existe uma resistência dos poderes constituídos em conviver com as novas formas. E esses jovens já vivem com as novas formas no seu cotidiano, para baixar música, para marcar festinha, para marcar eventos, para marcar passeata. No dia a dia eles já vivem com as novas formas, então esse Estado que está aí não representa, porque é pra votar de quatro em quatro anos…como ele participa? Eu recebi uma mensagem no Facebook, durante as manifestações de Junho, de um cara que eu conheço aqui de Porto Alegre, deve ter uns 20 anos…ele disse “Branco, eu queria falar contigo porque te acho mais ou menos politizado. No tempo de vocês, vocês não podiam falar, não podiam se expressar, liberdade de expressão era proibida, iam presos. Hoje não, a gente fala o que quiser. Nós podemos falar, somos livres para falar. Só que ninguém nos escuta. Black Bloc neles”, o cara terminou assim. Preciso ser ouvido, preciso que alguém me escute. Isso foi Junho.

Aproveitando que falaste da questão do fechamento do Estado, gostaria de uma avaliação tua sobre o Gabinete Digital (projeto do governo do Rio Grande do Sul que buscou criar ferramentas de participação via internet).

Ele teve uma crise de identidade. Foi importante, talvez a única marca diferencial desse governo Tarso Genro, pelo menos sob a ótica que eu vivo. Mas foi bastante tímida, também. No primeiro momento do Gabinete Digital, me pareceu que eles ficaram muito focados nas ferramentas. Parecia “a informática do governador”. Construía uma ferramenta do “governador pergunta”, “governador responde”, “agenda do governador”, que é importante porque é uma experiência de novas formas de participação, mas achei que ficou muito focado nas ferramentas. E não tinha nessas ferramentas novas vínculos com aquilo que nós temos de histórico: Orçamento Participativo, Conselhos Populares…era uma coisa dissociada. E coisas muito simples. O governador pergunta, aí o governador responde…a TAM já tinha isso, de “fale com o presidente”. E em um segundo momento do Gabinete Digital ele deixou de ser uma coisa da tecnologia e passou a ser mais um espaço da comunicação digital do governo. O “Tarso 2.0” transitava pelo Gabinete Digital. Mudou toda a equipe, que era mais técnicos de Software Livre, e virou mais comunicadores, e ficou sendo o que a Secom deveria fazer em todo o governo. Ele disputou, confundiu o que seria o papel da Secretaria de Comunicação do Governo com o Gabinete Digital, e o Gabinete Digital ficou, pra mim, sem identidade. Ou era a construção de ferramentas para a participação, e aí ele ficou bastante tímido, e em um segundo momento era a comunicação 2.0 do governador, a comunicação interativa do governador. E eu acho que o auge de tudo isso foi nas manifestações de Junho, o melhor momento do Gabinete Digital foi nas manifestações de Junho, que foi usando não ferramentas construídas pela Procergs, mas ferramentas como o hangout, botaram o governador em tempo real dialogando com as mídias sociais em um momento de crise institucional que a gente estava vivendo no Brasil e no Rio Grande do Sul. Foi o melhor momento do Gabinete Digital. Agora, como experiência é positiva.

Qual a relevância das redes na disputa eleitoral, pensando especialmente na eleição nacional? Inclusive o Sérgio Amadeu disse que sem a internet o Aécio Neves teria vencido…

Eu concordo com ele. Não que eu não ache que a internet poderia ter sido mais decisiva, tanto para um lado quanto para o outro. Acho que ainda foi muito pouco explorada, pelo potencial que tem. Mas se não fosse a internet, com aquela capa da Veja na finaleira da eleição, não teríamos uma resposta. Por onde íamos dar essa resposta? Foi a internet que ajudou, o que fomos nas redes foi determinante para não termos perdido a eleição. Se não fossem as redes, o resultado eleitoral poderia ser diferente, e essa pequena margem talvez fosse favorável para o Aécio, e não para a gente. Então sim, as redes sociais foram importantes nesse processo todo. Mas eu acho que as campanhas oficiais foram campanhas muito conservadoras, muito focadas na visão que tem o marqueteiro, que não conhece o ambiente da internet. Foi muito focada na reprodução daquilo que ia pra TV, pro rádio, pros impressos do partido. Houve pouco diálogo e muito broadcast, muita publicação de cima pra baixo

E se mantiveram os núcleos isolados, com pouca interação com os divergentes.

Sim, mesmo os militantes ficaram naqueles núcleos, uma comunicação que não dialoga, não passa. Os dois lados não dialogavam entre si. Teoricamente a internet poderia ter servido para a discussão de uma plataforma. É que esse não é um problema só da internet. Essa bipolarização que existe no Brasil há mais de 12 anos empobrece a política, porque os militantes de esquerda passam…tudo é uma questão de oposição e situação. Se o buraco é um buraco em Porto Alegre, o cara dá uma patada no Fortunati. Se o buraco é em São Leopoldo, ele defende o prefeito. O mesmo buraco, a mesma situação. Se estão cortando árvores, depende de quem é o prefeito. Então tudo é uma questão de disputa eleitoral. Os jovens militantes dos partidos estão pautados pelo calendário eleitoral. Já estão falando em 2018. Perdemos a disputa política conceitual. Independente de termos ganho a eleição, nós tivemos uma grande derrota ideológica, nós perdemos nos conceitos. O Brasil que saiu das urnas é um Brasil muito mais conservador do que era alguns anos atrás. Perdemos nos conceitos. Abrimos mão de fazer disputas políticas, politizadas, sobre temas centrais. Sempre é uma disputa em relação ao período eleitoral. Junho, não. Os manifestantes de Junho tinham uma pauta política. De todos os lados, mas tinham uma pauta política que não estava presa ao calendário eleitoral. Queriam melhor Saúde, melhor Educação, transporte coletivo de melhor qualidade, gratuito. Tinha uma pauta política que não estava para ser direcionada para um governante ou para um partido que assumisse amanhã ou depois. Inclusive, muitas reivindicações de Junho não cabem nos marcos institucionais que nós temos hoje. Por isso que, do meu ponto de vista, foram revoltas antissistema. Não eram pautas que cabiam dentro dos marcos institucionais no Brasil.

O PT entendeu mal isso?

Mal, muito mal. E pagamos o preço nessas eleições. Predomina até hoje, mesmo pós eleições e a nossa quase derrota nacional, nos militantes do PT…os militantes se comportaram muito mal. Os militantes de esquerda, em junho de 2013, onde pela primeira vez milhões de jovens saem às ruas, jovens que tinham de seis a oito anos quando o Lula chegou no governo, jovens que estavam fazendo sua estreia na política, que até então publicavam ovo frito e festinha de aniversário no Facebook e passaram a publicar “mais Saúde, mais Educação, melhor transporte coletivo”…esses jovens, que estavam tendo sua estreia na vida política, foram chamados de “coxinhas”, de “agentes da CIA”, de “direita”. Enquanto o outro lado, a direita, soube usar melhor isso que estava acontecendo e dizer “estamos junto com vocês”. A análise dos gráficos mostra isso. Até o dia 17 de junho, só tinha 13 a 15% de manifestações na internet contra o PT e contra a Dilma. E o Brasil já estava nas ruas. E terminou junho com tudo no colo da Dilma. Houve também uma movimentação da mídia de massas, dos grandes meios de comunicação, que, até a vaia para a Dilma no Mané Garrincha (estádio de futebol em Brasília), chamavam os manifestantes de “bandidos”, “delinquentes”. Esse era o tom dos principais meios de comunicação do Brasil: Globo, Estadão. Eles hostilizavam os manifestantes e estavam contra as manifestações. Quando a Dilma foi vaiada no Mané Garrincha eles viram que essas manifestações poderiam ser manifestações contra o governo. E não era contra o governo, era contra o sistema político, que tinha um governo de esquerda, progressista. Mas não era uma manifestação contra a Dilma, “Fora Dilma”. Essa sensação de que os movimentos de Junho foram capturados pela direita, ou que foram dirigidos pela direita, organizados pelo “PIG” (Partido da Imprensa Golpista, como são chamados alguns meios de comunicação hegemônicos), é uma viagem dos militantes de esquerda do PT. Até hoje, pós eleições, eles continuam tendo uma avaliação de que os movimentos de Junho foram organizados para derrotar a Dilma, para derrotar o PT. Só tem os marcos eleitorais nas cabeças desses militantes. Se os caras estão lá para reivindicar mais democracia, mais participação, melhoria na Saúde, melhoria no transporte público, melhoria na Educação, a esquerda tinha que estar junto com essa galera, e não dizendo “vão pra casa, vocês são agentes da CIA”.

O artigo original pode ser visto aquí