Projeto de lei prevê que todo preso seja ouvido por um juiz até 24 horas após ser detido. “Dá ao preso a chance de se defender e ser julgado de forma correta”, diz Marcos Fuchs, da Conectas

07/11/2014

Por Ricardo Rossetto da Ponte.org publicado pelo Brasil de Fato

 

Se uma pessoa for presa hoje, no Estado de São Paulo, terá sua primeira conversa com um juiz apenas em março, e isso se tiver sorte. Presos que aguardam julgamento costumam aguardar em regime fechado durante quatro meses, no mínimo, a sua primeira audiência com um juiz. Enquanto isso, passam os dias num dos 41 Centros de Detenção Provisória (CDP) espalhados pelo Estado de São Paulo, onde é comum encontrar mais de 40 detentos espremidos em celas onde deveriam caber no máximo oito pessoas.

“Deveria ser garantido a esses presos uma audiência de custódia, que o coloca na frente de um juiz em no máximo 24 horas depois da detenção. Esse instrumento jurídico é importante para dar ao preso à chance de se defender e de ser julgado de forma correta pelo crime que cometeu. Muitos deles têm direito ao regime aberto ou semiaberto”, explica Marcos Fuchs, membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária e diretor adjunto da ONG Conectas Direitos Humanos.

O projeto de lei 554/2011, que determina a audiência de custódia, tramita no Senado desde setembro de 2011, e encontra resistência da Associação dos Delegados de Polícia do Brasil e do Conselho Nacional dos Chefes de Polícia Civil. Em nota enviada ao Senado, os delegados afirmam que a audiência de custódia é uma medida dispendiosa e contrária ao interesse público, “uma vez que os órgãos de segurança pública não contam com recursos humanos e materiais e contingente suficiente para o atendimento dessa natureza tão complexa”.

O presidente da Associação, Paulo Roberto D’Almeida, afirma que, caso o projeto seja aprovado, “o Brasil enfrentaria uma verdadeira onda de impunidade. (…) Isso porque as grandes dimensões do nosso território e a estrutura de nossas instituições públicas seriam importante obstáculo à efetivação sistemática da medida, o que geraria a nulidade de boa parte das prisões realizadas”.

Para Fuchs, a medida é necessária para diminuir o número de presos provisórios e controlar a “nefasta política de encarceramento em massa” do Estado, que coloca, no mesmo lugar, indivíduos que são réus primários e sem antecedentes criminais junto dos presos que pertencem a facções criminosas, como o Primeiro Comando da Capital (PCC). Nos CDPs, o novato recebe as “regras do jogo” e é aliciado para o crime. “O PCC controla várias dessas unidades e é lá que eles fazem seus soldados. Os recém-chegados passam por uma série de humilhações enquanto esperam pelo seu julgamento”, diz.

Na opinião do diretor da Conectas, a Lei das Cautelares – que foi criada em 2013 com o propósito de oferecer aos juízes e delegados de polícia a possibilidade de aplicar penas diferenciadas aos presos em flagrante, como o pagamento de fiança, o monitoramento eletrônico por meio de tornozeleiras e a prisão domiciliar – “ainda não pegou”. Dos 220 mil presos no Estado, 88 mil são provisórios. “Mensalmente, a lógica que prevalece nos CDPs é a seguinte: entram nove presos e saem oito. No fim do ano, há 120 mil reclusos a mais do que o número de vagas. Juízes e delegados não estão usando corretamente essa lei. O cenário de encarceramento depois dela, na verdade, só piorou”, afirma.

Criminalização da pobreza

Dados do Conselho Nacional de Justiça apontam que o Brasil possui a terceira maior população carcerária do mundo, atrás apenas de Estados Unidos e China, com mais de 567.655 mil indivíduos cumprindo penas atrás das grades, e um déficit de vagas de 210.436 lugares. Um dos fatores que operou como multiplicador carcerário foi a Lei das Drogas, implantada em 2006. Sem estabelecer critérios exatos para definir quem é usuário de droga e quem é traficante, a medida deu aval às autoridades para que prendessem qualquer suspeito. Em setembro, um levantamento da Conectas mostrou a dimensão dessa prática: o número de pessoas encarceradas aumentou de 47 mil, em 2006, para 132 mil em 2014, um aumento de 320%.

“A lei antidrogas funciona como um instrumento de criminalização da pobreza. 25% da nossa população carcerária responde por crimes relacionados ao comércio de drogas. Desses, 70% são presos sem portar armar e 94% não fazem parte de organizações criminosas. É a Polícia Militar que age na repressão a esses usuários, o que gera um encarceramento em massa e arbitrário. Precisamos pensar numa nova lei de descriminalização da maconha”, afirma Rafael Custódio, coordenador do Programa de Justiça da Conectas.

Outro reflexo da falência do sistema prisional brasileiro é o desequilíbrio das forças institucionais que promovem a acusação e a defesa de uma pessoa presa. Um levantamento realizado pela Associação Nacional de Defensores Públicos em parceria com o Ipea em 2013, apontou que há, em todo o país, um déficit de 72% de defensores públicos. Em apenas 754 das 2.680 comarcas de todo o país há esse profissional à disposição do cidadão sem condições de pagar por um advogado. Em São Paulo, por exemplo, há 2 mil juízes e 1.500 promotores, contra apenas 600 defensores públicos. “O Estado tem o poder de acusar, mas também deve dar o direito de defesa. Não há esforço orçamentário, político e técnico para aperfeiçoar essa instituição da defensoria, que serve apenas ao pobre. Não é à toa que um defensor público ganhe menos do que um promotor”, diz Custódio.

(Texto produzido no I Curso de Informação sobre Jornalismo e Direitos Humanos, realizado por Abraji, Conectas, Ponte e Oboré)