Para driblar a dificuldade de locomoção entre as comunidades que participavam do projeto, o documentário contou com um recurso fictício, a TV Tapuia. A gravação feita em uma comunidade era levada a outra para uma sessão de TV, permitindo que as três comunidades soubessem o que ia sendo gravado para o filme.
A exibição do documentário e debate sobre o tema promovidos nesta segunda-feira (26) no Cine Livraria Cultura, em São Paulo foi, de acordo com Eliane, uma continuidade desse processo. Tanto a exibição quanto o debate foram filmados e as comunidades quilombolas vão poder assistir as reações da plateia ao filme e ao debate.

O evento reuniu várias partes desse conflito entre quilombolas e o Programa Espacial Brasileiro, que começou com a implantação, em 1980, do Centro de Lançamento de Mísseis em Alcântara, escolhida por ser um dos pontos mais privilegiados para lançamentos de foguetes do mundo, já que sua proximidade com a linha do Equador permite uma economia de 30% de combustível.

O governo militar na época considerou essa área ocupada por cerca de 3.000 famílias espalhadas por 159 povoados como um “vazio demográfico” e desapropriou 52.000 hectares de terra. Uma extensão desproporcional, considerando-se os 8.000 hectares usados até hoje. Em 1991, Fernando Collor desapropriou mais 10.000 hectares. No governo Sarney, 312 famílias foram remanejadas para as chamadas “agrovilas”, instaladas longe do mar (dificultando e, em alguns casos, impedindo a pesca) e em áreas de solo improdutivo (avisados de que as famílias estavam sendo remanejadas para uma área em que o solo era tão fértil quanto o deserto, os militares prometeram um projeto de irrigação que nunca foi implantado).

Interesses estrangeiros

Segundo Seu Leonardo dos Anjos, representante do Movimento dos Atingidos pela Base (MAB), a maioria dessas famílias perdeu seu meio de sustento e hoje vive do bolsa-família ou da aposentadoria de trabalhador rural. Ele questiona a validade de um programa espacial que “atende a interesses estrangeiros e até hoje nunca conseguiu lançar um foguete”: “Não somos contra o projeto nem o avanço tecnológico. A gente quer que o governo leve adiante seu projeto, mas deixe os quilombolas nas suas terras. Porque não vamos sair das nossas terras pra deixar pros ucranianos, pros americanos. Não vamos sair, vamos lutar até o fim.”

Os representantes do governo presentes no debate pareciam surdos à reivindicação dos quilombolas que é simplesmente ter reconhecido o direito de titularidade de suas terras já garantido pela Constituição de 1988.

Presente no debate, o atual presidente da Agência Espacial Brasileira, Marco Antonio Raupp, insistia em uma ideia de conciliação de interesses, afirmando que a dívida do governo com os quilombolas é igual à dívida do governo com o Programa Espacial, que não recebia a devida atenção.

A temperatura do debate subiu com a intervenção desastrosa de Roberto Amaral, vice-presidente do PSB e ex-ministro da Ciência e Tecnologia no governo Lula. Até março deste ano, ele era diretor da empresa bi-nacional (brasileira e ucraniana) Alcântara Cyclone Space (ACS), criada para gerir o projeto do Centro de Lançamentos. Segundo a Agência Estado, recentemente Amaral vinha enfrentando problemas de relacionamento com os ucranianos, atrasos nas obras da base de lançamento e problemas de capital na empresa. Sem ver decolar seus projetos, muito menos foguetes, Amaral optou por sair. Não sem antes conseguir ser oficialmente “demitido” do cargo e, assim, receber pelo menos R$ 280 mil dos cofres públicos, a título de indenização, já que seu regime de contratação era CLT, por ser a ACS uma empresa de parceria internacional.

O controvertido ex-ministro defensor da bomba atômica brasileira afirmou que os quilombolas mereciam muito mais do que continuar em suas terras, deveriam ter o “engraçamento da cidadania” que os tiraria da “superstição”. Continuando com um discurso que em alguns momentos não se sabia se era de defesa ou ataque do projeto, ele afirmou que “há 30 anos, o governo investe dinheiro público neste projeto sem nenhum controle”. Por outro lado, defendeu a importância do programa espacial brasileiro e afirmou que não há transferência de tecnologia, porque isso fere os interesses dos Estados Unidos. Encerrou seu discurso sob protestos da plateia, que gritava “Chega!” e “Vai para o espaço!”.

Também presente no debate, o antropólogo Alfredo Wagner, professor da UFAM e coordenador do projeto Nova Cartografia Social da Amazônia, foi o autor do laudo antropológico que garantiu a certificação de território étnico às comunidades de Alcântara. Com base nesse laudo, o Ministério Público Federal no Maranhão recomendou este ano ao Incra que não promova novos remanejamentos das comunidades quilombolas, por sua inconstitucionalidade.

Herança da ditadura

Segundo o professor Alfredo, essa ameaça de novos remanejamentos deve parar imediatamente, pois isso resulta em “um povo que não tem direitos, nem certeza do seu amanhã”. Ele aponta essa permanente ameaça de deslocamento como característica do governo militar, entre outras heranças do período autoritário depois de 23 anos de constituição. Diante dessa estranha continuidade, com graves violações dos direitos humanos, ele afirma que “falar em conciliação sem reconhecimento dos direitos é reproduzir essa relação autoritária”.

Ele denuncia a pressão do agronegócio para impedir a titulação de terras quilombolas (o DEM entrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade contra o decreto 4887/03 que regulariza a titulação de terras) e alerta que sem a titulação, o conflito tende a se agravar. “Tem que haver o reconhecimento imediato do direito, depois senta pra conversar!”